segunda-feira, 30 de maio de 2016

Hoje eu não acordei boa não

Não lembro que idade eu tinha, 8, 9 anos, talvez... Eu e minha irmã fomos com uma amiga visitar seus pais na roça. A adolescente veio para Baldim para estudar. Ficar na roça não dava futuro. Ela era babá numa casa da elite local. Fomos de ônibus até uma parte do caminho e seguimos o restante a pé. Eu ficava impressionada com a segurança da minha amiga, pelo mato, sem medo de se perder, seguindo aquelas pequenas trilhas. Depois de quase 1 hora de caminhada, chegamos. Os pais numa alegria só, em receber a visita da filha. Uma prima dela, da cidade grande, de férias, também estava por lá. Aquela menina branquinha, de cabelo liso, falando tão diferente de nós, chamava minha atenção. Eu a achei tão linda, tão fascinante que não parava de olhar para ela. Lembro que ela insistia em ensinar um papagaio a música de abertura do programa Silvio Santos:
"Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará! Lá! Lá! Lará! Lará!
Agora é hora de alegria!
Vamos sorrir e cantar!
Do mundo não se leva nada!
Vamos sorrir e cantar!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará!
Lá! Lá! Lará! Lá! Lá! Lará! Lará!
Silvio Santos vem aí!"
O que significava isso? A menina tinha televisão em casa. O que aumentou, ainda mais, minha admiração por ela.
À noite, dormimos todas juntas, numa mesma cama de casal. Cobertas artesanais de algodão pesadas sobre nós, espantava o frio. Duas para cima, duas para baixo. Assim nos dividimos na cama, que ficou apertada para tanta criança. Em um determinado momento nossos pés (meus e da minha irmã) roçaram o pé da menina. Ela estranhou: "nossa, seu pé é muito áspero!" Fiquei muito envergonhada. Não tive coragem de explicar que andávamos a maior parte do tempo, descalças. E que o único par de sapatos que tínhamos era economizado para irmos à escola e à missa. O resto do tempo ficávamos era de pé no chão mesmo.
Pela manhã, acordei com o sol entrando pela fresta da telha. Lavamos o rosto numa água gelada que vinha, numa mangueira, de uma nascente no fundo do quintal. O mato ainda estava coberto por uma neblina que escondia a serra, ao fundo. A mãe já na peleja, jogando milho para as galinhas, com os cachorros atrás. O pai, antes de seguir para a roça, preparou nosso café da manhã. O cheiro de um café ralo e doce, passado no coador de pano, inundou a cozinha. Eu sentia muita fome. Não tinha pão. O café foi servido numa canequinha esmaltada que queimou minha boca. Para comer, farofa de queijo. Passei a minha vida inteira tentando repetir aquela farofa, mas nunca consegui. O queijo derretido misturava-se à farinha. Ambos, feitos ali mesmo, pelo casal. Hoje, passado tanto tempo, os adolescentes vêm estudar em ônibus escolares. Não precisam mais andar a pé. Muitos que moram aqui, vão de moto ajudar o pai na roça, depois voltam no final do dia. Inúmeras família vivem uma vida digna, com a agricultura familiar. Alguns, além da carroça onde vendem suas verduras, têm pickup's novas que facilitam um monte a vida na roça. E eu, lembrando Adélia, "tou com medo de apanhar tristeza, encardir de melancolia", pensando que isso tudo está ameaçado com o fim do ministério do desenvolvimento agrário e com a redução do bolsa família. Muitos não têm noção do impacto que isso terá por este sertão afora.
Desesperança e descrença é um troço muito ruim de sentir.
Hoje eu não acordei boa, não!

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