segunda-feira, 2 de maio de 2016

Tatipirun

A hora da caminhada é sempre muito interessante, só você com seus pensamentos. Hoje, aconteceu uma coisa estranha. Me distraí do ponto onde retorno e continuei a caminhar. Só percebi que já estava no asfalto quando o movimento de carros ficou intenso e caminhões passavam muito perto de mim. Apesar do perigo, meu desejo era seguir sempre em frente. Lembrei então, dos meninos d' "A terra dos meninos pelados", de Graciliano Ramos. Quando cheguei em casa, fui revisitar a história. Tatipirun é uma terra onde todos só andam pra frente: "aqui nós nunca voltamos", é o que dizem por lá. Vai ver, era o meu medo dos retrocessos que nos assombram, que me impelia a seguir em frente. Raimundo, o menino protagonista do livro era uma criança diferente. Tinha o olho direito preto, o esquerdo azul e a cabeça pelada. Como todos mangavam dele, ele só desejava um lugar onde se respeitassem as diferenças e ele pudesse viver quietinho. Até que um dia, cansado das gozações, Raimundo fechou os olhos e se viu atravessando o seu quintal e chegando numa terra onde ninguém era igual. As pedras se endireitavam para que as pessoas pudessem sentar e ficar bem acomodadas. Os rios estreitavam as margens para facilitar a travessia. As árvores baixavam seus galhos para a colheita de seu frutos. Até mesmo o automóvel do qual o menino não conseguiu se desviar, o tranquilizou: "Deixe de besteira, seu Raimundo! Em Tatipirun nós não atropelamos ninguém." E "levantou as rodas da frente, armou um salto, passou por cima da cabeça do menino, foi cair cinquenta metros adiante e continuou a rodar fonfonando." Uma laranjeira que estava no meio do caminho, afastou-se para o menino passar, dizendo amável: "Faz favor!" Raimundo agradeceu dizendo que a árvore era muito educada e a laranjeira respondeu: "Tudo aqui é assim." O menino se espantou com aquele lugar onde "o sol permanecia no mesmo ponto, no meio do céu. Nem manhã, nem tarde. Uma temperatura amena, invariável." E se convenceu: "preciso consertar o meu estudo de geografia." Em Tatipirun as aranhas teciam túnicas coloridas. Ao ver Raimundo com roupas tão estranhas, ela foi logo indagando como ele conseguia se movimentar com aqueles "troços" sobre o corpo, que mais pareciam "arreios". Ela lhe deu uma túnica azul e ele descalçou os sapatos, sentindo a frescura da terra nos pés. Em suas andanças por aquela terra, Raimundo conheceu a princesa Caralâmpia. A princesa tinha uma coroa de flores, um broche de vagalumes e pulseiras de cobras-coral. Assustado, Raimundo gritou: "Credo em cruz! Tire essa bicharia de cima do corpo menina. Isso morde!" Indignado, o vagalume tremelicou: "É comigo?" E as cobras responderam: Não senhor, é conosco. Aquilo é um selvagem. Na terra dele as coisas vivas mordem." Espiando as cobrinhas com o rabo de olho, o menino quis saber como Caralâmpia tinha virado princesa. "Virando!" respondeu a menina. "Aqui a gente vira e desvira". Raimundo ficou deveras intrigado com aquele lugar, onde as pessoas não iam ao dentista, não sentiam dor de barriga, não tinham sarampo, não envelheciam. Eram sempre meninos. Ali não precisavam ser todos iguais, feito rapadura, e cada um podia ser o que quisesse. Depois de muito andar e de conhecer todos os habitantes de lugar tão diferente, Raimundo resolveu voltar para casa. Afinal, tinha seu gato para cuidar e lição de geografia para fazer. Mas estava convencido que Tatipirun não ficava tão longe assim, e que poderia voltar quando quisesse. Era só fechar os olhos.

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