sábado, 7 de maio de 2016

Sororidade


Se estivesse viva, este ano mamãe completaria 86 anos. A última vez que falei com ela, foi alguns dias antes dela morrer, no hospital. Cheguei e tomei a bênção, como ela fazia tanta questão:
"Bença, mãe!"
Com sua voz grave e rouca, entrecortada com a respiração difícil por causa do enfisema pulmonar, ela respondeu:
"Deus te abençoe, minha filha!"
"Como a senhora tá?" Perguntei.
"Acho que dessa vez eu não aprumo mais não!" Respondeu.
Não aprumou. Morreu dias depois.
Uma vez, briguei na rua, como diz o menino, "por causa de homem". Em plena praça de Baldim, festa do padroeiro, cortejo de congado. Como no poema "Briga no beco" de Adélia Prado, "ajuntou gente, escureceu o sol, a poeira adensou como cortina". Eu só recobrei os sentidos quando ouvi o choro do menino. Todo mundo recriminou:
"Como assim, uma socióloga brigando no meio da praça e por causa de homem"?
Até sobrinho-neto, adolescente na época, aconselhou:
"Tia, você não pode deixar sentimento te dominar assim não."
Ouvi calada, arrasada.
Eu, brigara na praça.
Quando cheguei em casa, cabelo desalinhado, roupa suja amassada, pensei que mamãe ia me bater. Lembrei do poema de Adélia. Entre soluços, os olhos vermelhos, disse:
"Era uma fêmea ofendida, mãe!"
Ela olhou dentro do meu olho e disse:
"Eu te entendo, minha filha!"
A abracei, ali mesmo, no meio da rua, e chorei, chorei "até a cratera exauri-se".
Depois, ela saiu andando pelas ruas de Baldim, procurando quem tinha afrontado filha sua. Felizmente, não encontrou ninguém.
De outra feita, eu, numa relação abusiva, depois de sofrer agressão física pela segunda vez, resolvi contar. Meu irmão caçula, na época com uns 15 anos, disse:
"Eu mato aquele desgraçado!".
Mamãe pegou um espeto de churrasco e numa cena de comédia pastelão gritava:
"Ele que não apareça aqui, que furo ele todo."
Minhas irmãs choraram.
Me senti amada, acolhida, mas ainda não estava pronta para uma separação. Minha razão dizia para eu não voltar, mas meu coração desejava o contrário. Desesperada, pedi:
"Me amarrem ao pé dessa mesa, mas não me deixem voltar." Como a mulher do "Caso do vestido", do Drummond, pensei na morte, mas a morte não chegava. Mamãe, vendo minha tristeza, consolava:
"A gente sobrevive, minha filha. Olhe pra mim! Mulher não precisa viver sob domínio de homem, não. Ainda mais homem ruim".
Eu, sofria.
Não conseguindo verbalizar o que sentia, cantei para ela:
"Disseste que se tua voz tivesse força igual
À imensa dor que sentes
Teu grito acordaria
Não só a tua casa
Mas a vizinhança inteira"
Ela então, me pegou pela mão e foi junto atrás do motivo de tanta dor. Algumas irmãs choraram, não acreditaram que depois de tudo, eu reataria.
"Pode esquecer que sou sua irmã", ouvi de uma.
Mamãe, de novo, me olhou nos olhos e disse:
"Qualquer decisão que você tomar, continuará sendo minha filha."
Tempos depois, aprendi com o feminismo que essa cumplicidade que tínhamos uma com a outra se chama sororidade. Mais que mãe e filha, éramos duas mulheres com histórias de vida muito parecidas. Mamãe, pacientemente, me esperou estar pronta.
E, anos mais tarde, quando mostrei a ela, a certidão da averbação da separação, ela sorriu e disse:
"Vamos comemorar!"
E passou um café para nós.

2 comentários:

  1. Você é foda!!! Foda por compartilhar...

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  2. Sororidade, não gostava desta palavra, tem a ver com soro, lembra vida e renovação, agora aprecio, faz sentido.

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