quinta-feira, 20 de agosto de 2015

"Uma viagem inventada no feliz"

Meu irmão chegou ontem, de viagem. Eu ansiosa, querendo saber como tinha sido a experiência de viajar pela primeira vez de avião. O entusiasmo dele me fez lembrar do conto "As margens da alegria", de Guimarães Rosa. No conto, um menino viaja de avião, também pela primeira vez. Para nós, que tivemos acesso a esse direito há tão pouco tempo, até o 'afivelar do cinto vira afago'. Meu irmão viajou com a filha, que há tempos calculava tudo: dia dos pais, jogo do galo no Serra Dourada, ela de férias... por que não levar o pai para ver o jogo? Quantos coelhos não matariam com uma cajadada só? Como ela já tinha vivido a experiência, deixou o 'lugar da janelinha' para o pai. Quando ele chegou, eu quis saber de todos os detalhes: as comissárias de bordo, da cara feia da filha quando ele disse que queria um de cada, daqueles pacotinhos minúsculos de bala e biscoitos da Azul. Eu dei uma força: 'Não ligue, Zé! Eu também sempre pego um de cada e ainda trago para o menino'. Mas o que encantou mesmo meu irmão foi 'o chão plano em visão cartográfica'. Motorista de profissão, ele já viajou muito e reconhecer os lugares onde já esteve, lá de cima, foi uma experiência surpreendente. Ele acompanhou toda a viagem no mapa da tv, à sua frente. Falava com entusiasmo de ter localizado a BR 040, a fábrica da Iveco, o Rio São Francisco, a represa de Três Marias, a Serra do Cipó e até a Serra de Baldim. Achou a viagem rápida demais, queria ficar mais tempo no ar, 'no macio rumor do avião', nas 'nuvens de amontoada amabilidade'. Ontem, quando ele chegou, mostrei o sucesso que fez a foto dele no avião. Vi, que ele reviveu toda a emoção sentida na companhia da filha. Li cada comentário que meus amigos postaram na foto. Com a marmita de comida na mão, ele não saía da frente do computador. Ficou parado em frente à tela um tempão, olhando a foto, visivelmente emocionado. Engoliu o choro, pegou sua marmitinha com a janta e foi comer no barracão, no fundo do quintal, onde ele dorme. Parafraseando Guimarães Rosa, 'está é a estória' de um pai com sua filha e uma 'viagem inventada no feliz'.

Olhos novos e novas maneiras de olhar

acordo às 5 da manhã, com os sinos da igreja chamando para a reza. é que a 'festa de agosto' já começou. mas por que tão cedo?  "é para rezar antes de ir para o trabalho", explicou minha irmã. já que acordei cedo, aproveito para fazer a minha reza também: um poema de matilde campilho, uma crônica de manuel bandeira, outra de drummond: "se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, diz o escritor. leio mais um pouco e o mineiro me enche de esperança: "se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. já não é possível viver no clima das obras-primas fulgurantes e... podres, e legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos, reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem espetáculo novo de que estão participando." repito pra mim mesma: " reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar"... novas maneiras de olhar... olhos novos... olhos novos, reformem a capacidade de admirar e imitar... 'tendeu'? que assim seja. amém, drummond! amém!

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Bença, Dindinha!


Ainda estou impactada pela visita à Dindinha Maria. Dindinha era casada com o irmão de mamãe, tio Bolivar e é madrinha do meu irmão mais velho. Mas nós todos, os dez irmãos, também a adotamos como madrinha. Virou a dindinha de todos nós. Nossos quebrantos, mau-olhados e espinhelas caídas foram curados por ela e seus raminhos de arruda e guiné, 'panhados' em sua horta. Dindinha enterrou recentemente suas duas únicas filhas em um espaço curto de meses. Ainda assim, continua lá, firme e forte. 'Agora a Senhora está sozinha, Dindinha?' Meu irmão perguntou. Ela respondeu: 'Não, tô com Deus!' Seu terreiro parece uma aldeia, com as casas dos filhos, netos e bisnetos, todas construídas ao redor da sua. Sentados na cozinha, eu observava sua boca murcha, sem nenhum dente, e ouvia suas histórias. Olhava, olhava e só via beleza. Apesar da pele vincada, do corpo já curvado pelo peso do mundo, as rugas eram poucas para quem está com 80 anos e forjou sua vida no cabo da enxada. Enquanto ela falava eu via mamãe em suas histórias, nos detalhes da sua casa. A luz da manhã entrando pelos brechas do telhado, a cinza no fogão ainda quente, confirmando que o café oferecido, tinha sido coado ali, naquele fogão, recentemente. A cozinha, agora, abriga um desses armários tipo 'casas bahia' , mas a prateleira antiga, com as vasilhas de alumínio extremamente ariadas (como também eram as vasilhas de mamãe), também estavam lá. O papagaio irritado em dividir a companhia dela conosco, a chamava o tempo todo: 'mãe, mãe, ô mãe!'. É isso o que ela é: uma mãe! Até os netos a chamam assim. Saí de lá, convencida que esse é o meu lugar. Minha força vem dessas mulheres, simples e guerreiras, grandes matriarcas; minha descendência vem desse império.  Cada dia eu me convenço mais que sou é mulher do povo, mãe de filho, sonhando em ser Adélia. Quero ser carpideira, encomendadora de almas, dançadeira de São Gonçalo. É desse lugar que vim, é nesse lugar que gosto de estar.
A bênção, Dindinha!

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Um teto todo seu ou um quarto de despejo?

despachar o menino para escola, cozinhar feijão, comprar, ainda pela manhã: carne, frutas, leite... são os lembretes do dia pregados na porta da geladeira. e a tese? lembro de virgínia woolf: "dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses." dê-me 5 dias, apenas 5 dias, desafogada das obrigações de dona de casa e mãe de filho, para só me dedicar à leitura e à escrita e verás o belo texto que sou capaz de escrever. um teto todo meu e 500 libras por ano... até que não seria nada mal... suspiro fundo. o apito da panela de pressão me traz de volta para a realidade. esqueço a escritora inglesa, branca e burguesa e lembro de outra: "deixei o leito as 4 horas para escrever. abri a porta e contemplei o céu estrelado. quando o astro-rei começou despontar eu fui buscar água. tive sorte! as mulheres não estavam na torneira. enchi minha lata e zarpei." (...) " preparei a refeição matinal. cada filho prefere uma coisa. a vera, mingau de farinha de trigo torrada. o joão josé, café puro. o josé carlos, leite branco. e eu, mingau de aveia. já que não posso dar aos meus filhos uma casa decente para residir, procuro lhe dar uma refeição condigna." "terminaram a refeição. lavei os utensílios. depois fui lavar roupas." (...) "estendi as roupas rapidamente e fui catar papel. que suplicio catar papel atualmente! tenho que levar a minha filha vera eunice. ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. suporto o peso do saco na cabeça e suporto o peso da vera eunice nos braços. tem hora que revolto-me. depois domino-me. ela não tem culpa de estar no mundo.  quando fico nervosa não gosto de discutir. prefiro escrever. todos os dias eu escrevo. sento no quintal e escrevo." 3 filhos, favelada e catadora. suas palavras ficam ecoando em mim: "todos os dias escrevo. sento no quintal e escrevo"... quando eu tiver minha casa e um altar para os meus santos, junto das imagens de são benedito, santa efigênia, são francisco e são gonçalo (virei devota recentemente, depois de descobrir que ele é padroeiro das mães solteiras) e das fotos de santa clarice e são joão guimarães rosa, também vou colocar uma de santa carolina maria de jesus. hoje, a vela acesa será em sua homenagem: mulher preta, mãe de filhos, catadora, favelada e escritora. valei-me carolina!

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Pai, ô pai...

"Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão."
(Poema esquisito, Adélia Prado)

José Soares Gonçalves. Seo Zezinho Miçangueiro, como era conhecido. Eu meço 1,55 m e ele conseguia ser menor do que eu. Grande mesmo era o coração.Tinha doença de chagas, morreu por causa dela. O coração foi crescendo, crescendo até não caber mais no peito e parar de bater. Foi picado pelo barbeiro na casa de pau a pique, lá em Santo Antônio do Baú, povoado onde ele começou a vida com minha mãe.

Tenho muita inveja dos meus irmãos e irmãs mais velhos que têm sempre mil histórias de afeto e carinho, para contar sobre ele. Eu, das filhas mais novas, peguei o casamento já no final. Lembro mesmo é da violência doméstica, das brigas, ele querendo bater na mamãe, ela querendo se separar, mas ainda com filhos pequenos. Uma mulher analfabeta, o que fazer?

Tenho poucas lembranças dele, porque convivi pouco e mesmo quando morávamos juntos, quem ralhava com a gente era mamãe, ele nunca dizia nada, não se metia na criação dos filhos. Lembro dele, reformando as caixas de madeira para levar "miçanga" (frutas e legumes) para a Ceasa, em BH. Lembro que às vezes, ele chegava da rua, já tarde da noite e fritava carne de porco. Um cheiro bom invadia a casa e nessa hora sempre dávamos um jeito de levantar da cama, para fazer sei lá o quê, só para passar na cozinha e ouvir ele oferecer: "come um torremo, minha filha". Eu não esperava ele falar duas vezes.

Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho pra acompanhar a folia de reis, que era um dos sonhos da vida dele. Um dia, nessa mesma mesa que escrevo, em uma das nossas conversas, mamãe me disse: "ele era péssimo marido, mas era um bom pai". Eu tomei um susto! "Como assim, mãe? Eu cresci achando que ele era "o marido safado que trai a esposa" e agora a Senhora me diz isso? Depois que ele morreu?" Rindo, ela insistiu: "mas ele era um pai amoroso, sempre foi". Mamãe sempre falava com sua voz grave: "se seu pai estiver no céu, eu quero ir para o inferno. Não quero encontrar com ele não."

Eu, solidária à mamãe, sempre fui respondona, sofrendo junto com ela quando o víamos subir para o puteiro, no final da rua. Até me envolvi em uma confusão com uma amante dele, que um dia pediu dinheiro, quando eu passava perto deles. Senti que era para me provocar, e depois daquele dia, sempre que passava por ela, eu pedia dinheiro a quem estivesse comigo. Um dia ela quis me bater, eu me escondi na casa de uma amiga. Ela, a amante, foi atrás do meu irmão reclamar de mim, disse que eu a estava provocando. Meu irmão saiu em minha defesa: "eu vou é bater em vocês dois, porque você e o papai são muito safados", ele disse. Me senti amada, com meu irmão me defendendo. Vai ver é por isso que temos uma relação de afeto tão forte, até hoje.

Só desconstruí a imagem do "homem safado que traía a esposa", anos depois de sua morte, quando eu já desejando ser mãe, quis conhecer o lugar onde ele começou a história com minha mãe: Santo Antônio do Baú. Era 6 de janeiro, dia de Reis, remate da folia. Naquele dia, a folia do Baú completava 50 anos de existência e as crianças da escola fizeram uma linda homenagem. Tomei outro susto quando vi que meu pai era um dos homenageados, pois foi um dos fundadores da folia. Todos ali tinham histórias para contar sobre o bom humor do papai e o mau humor da mamãe. De como ele gostava de receber a folia de reis em casa e mamãe ficava extremamente irritada, pois a dança estragava o chão de terra batida que ela cuidava com tanto zelo, inclusive passando barro do córrego para o chão ficar branquinho.

Certa vez, em Sete Lagoas, quando eu acompanhava a folia de reis de Baldim numa caravana, conheci um senhor, um folião, que caiu em prantos quando descobriu que eu era filha do Seu Zezinho Soares. Entre soluços, aquele 'tiozinho', já alterado pela cachaça que ia bebendo durante a peregrinação da folia, me disse que o primeiro sapato que ele calçou na vida, tinha sido presente do papai. Que ele, ainda menino, trabalhou para o papai ajudando a colher quiabo e que descalço, um dia furou o pé num prego. Naquela mesma semana, quando papai voltou da Ceasa, trouxe um par de botinas para ele. Foi outro susto: "como assim, papai era uma pessoa sensível?". Foi então, que a 'ficha caiu' e eu percebi que como todo mundo, papai tinha defeitos e qualidades.

"Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia."

(Poema Esquisito, Adélia Prado)

sábado, 8 de agosto de 2015

Pé no chão





 desceu do salto
aposentou as sandálias
agora, é pé no chão.




sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Filho é pro mundo?

hoje ouvi pela primeira vez "mãe", faixa do novo álbum do emicida. "em tudo ouvia a voz de minha mãe, diz o refrão. não tem como não lembrar da minha. tô aqui morando na casa que foi dela, que ela comprou e que trabalhou tanto para pagar. "não esqueci da senhora", emicida canta. eu também não esqueço da minha. faço arroz na mesma panela que ela fazia; estendo a roupa no varal, como ela estendia. como o rapper, eu também, em tudo ouço a voz de minha mãe. até hoje. "em tudo eu via nois". "marcas várias, senzalas, cesárias, cicatrizes, estrias, varizes, crises..." "enquanto enfrenta a guerra, os tanque, as roupa suja, vida sem amaciante"... "até meu jeito é o dela"..."vi deus, ele era uma mulher preta". a emoção é tanta que a filha cede lugar à mãe. lembro do menino. pauso a música que rola no computador na mesa da cozinha e vou até o quarto, já em prantos. "a beleza sozinha é triste, disse o poeta", preciso dividir com alguém. "tô ouvindo a música nova do emicida", falo já em soluços. ele diz: eu também! e solta o plug do fone ligado no tablet. o som ecoa pelo casa: "em tudo eu via a voz de minha mãe". o meu choro aumenta. o menino me abraça e eu choro ainda mais. "a sós nesse mundo incerto"... ele que por tanto tempo coube em meu colo, agora é quem me acolhe em um abraço apertado e, enquanto as batidas do seu coração colado em meu ouvido se confundem com os bits da música, ouço dona jacira, mãe do rapper dizer, "alguém prevenia: filho é pro mundo", e ela mesma, fazendo minhas as suas palavras, responde: "não, o meu é meu!"


terça-feira, 4 de agosto de 2015

Um afeto que eu não conhecia



eu não escolhi o nome dele, nem o vi filhote. quando cheguei, ele já estava aqui. nossa história começou tumultuada com ele roubando bife, batata frita, pão quentinho, recém chegado da padaria. chegou a comer um bolo inteiro. um instante só, e restaram apenas farelinhos em cima da mesa. me irritava os pelos espalhados pela casa e as marcas de pata na varanda, em dias de chuva. passado alguns meses, basta eu ligar o computador e ele se enrodilha aos meus pés. alguém sabe  explicar sobre o afeto que nasce entre pessoas e animais? justo eu, que sempre resisti a ter cachorros em casa...

domingo, 2 de agosto de 2015

Pré-texto

Sentada na mesa da cozinha me esforço para concentrar na leitura, buscando inspiração para a escrita. Os cadernos e livros se misturam com o bolinho de cenoura com cobertura de chocolate que fiz para o menino forrar o estômago, antes de ir para a escola.  A mesma janela azul onde mamãe se debruçava com as mãos no queixo, observando o movimento da rua está aberta. Agora, quem olha através dela sou eu. A madeira azul, já gasta pelo tempo, define a moldura de um quadro por onde vejo o que restou dos pezinhos de quiabo que plantei. Eles praticamente não produzem mais, mas eu ainda não tive coragem de arrancá-los. Depois do muro vejo o troca-troca de passarinhos pousando no emaranhado de fios da rede elétrica. Vejo também uma parte do telhado da casa que foi da Dona Maria do Heitor. Depois do telhado vejo o morro e a estrada poeirenta nesses tempos de falta de chuva.  Vez ou outra, sobe ou desce um carro levantando a poeira do caminho.  Por aqui tudo gira lentamente, me dando a impressão que,  a vida mesmo, "explode em bombas e dádivas de toda espécie" é depois do morro. Essas "confissões" sem importância nenhuma, são na verdade, pré-textos/pré-tese, uma espécie de oração para iniciar a escrita. Sem esse exercício eu não consigo sair do lugar.

Cheiros e sons

Baldim é sobretudo cheiros e sons. É o cheiro da fumaça do fogão a lenha, do café ralo coado no coador de pano, do alho socado na hora, do arroz refogado em gordura de porco, da bananinha e da goiabinha cremosas das várias fábricas espalhadas pela cidade. Baldim é também o som das caixas do catopê e da guarda de congo. É a voz do leiloeiro anunciando as prendas a serem arrematadas na quermesse do Asilo de São Vicente de Paulo. É o som do alto-falante da igreja que toca a ave maria, todas as tardes, na hora do ângelus. É também o coro de vozes infantis acordando a cidade para a missa aos domingos, pela manhã. Do mesmo alto falante vem as notas de utilidade pública: o celular perdido, a menina que parou de se alimentar porque o cachorrinho sumiu, o levantamento da demanda para a educação de jovens e adultos na escola estadual. Só um som não  é bom de se ouvir. Quando o alto-falante anuncia o canto "vinde todos os povos da terra para juntos a paz celebrar (...) vinde pobres, entrai rejeitados, aceitai o convite do Pai..." não é um bom sinal.  Depois desse hino, vem sempre a voz firme do Zé da Bilinha anunciando uma "nota de falecimento". A respiração fica suspensa até ouvirmos o nome do falecido e sabermos se é ou não alguém da nossa rede de afetos.

Alma de artista

Eu tenho vocação para artista. É sério!

Tudo começou quando fui alfabetizada e descobri o universo da leitura. Lembro de passar as tardes na biblioteca municipal que ficava na prefeitura de Baldim. Li todos os livros infantis que havia lá: "Camilinha no país das cores", "Camilinha no pais da beleza". Lília Malferrari era minha escritora preferida nos meus 7 anos de idade. Lembro que a bibliotecária, sempre muito carinhosa, me sugeria livros e eu adorava ficar ali; só eu, ela e aquelas prateleiras todas de livros só pra mim.

Talvez por causa da leitura comecei a gostar de escrever, até fui premiada em um concurso de redação no município. Fiquei em segundo lugar, mas como o menino que ficou em primeiro não estava na cidade, a minha redação é que foi para Sete Lagoas concorrer com as outras selecionadas nas escola do Estado. Poderia ter sido uma escritora.

Depois entrei para a Banda do Seu João de Afonso, era o destino de toda criança baldinense. Ainda hoje, muitas seguem esse caminho. Sonhava em tocar a clarineta e o sax, mas ele nos torturava, antes, com as aulas de teoria musical nos ensinando a ler as partituras. Lembro que um dia solfejei tão bem, sem um errinho sequer, que Seu João ficou tão impressionado, que me deu os parabéns e ele nunca fazia isso. Poderia ter sido cantora, pois até hoje sou bem entoadinha.

Teve também os teatrinhos dirigidos pelas irmãs Rosali e Roseni. Lembro de uma seleção que elas escolheriam a protagonista para uma peça que elas estavam escrevendo. Eu tive que improvisar uma cena romântica com um garoto, mas foi um desastre. Perdi o papel e a peça "Quem matou o fazendeiro" foi protagonizada por outra menina. Teve até bilheteria. Hoje, quando vejo atores e atrizes como Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, João Miguel, Hemila Guedes, Alice Braga, fico com a impressão que a arte de representar é uma das coisas mais fáceis do mundo.Quem dera eu ter 30 anos a menos e me matricularia, hoje mesmo, num curso de teatro.

Teve também a dança. Fui rainha da discoteca no final da década de 1970. Ganhei vários concursos na discoteca Punk que havia na praça e no Midlab, clube da cidade. Até recebia convites para dar aulas de dança. Assistia todos os videoclipes  na Tv, para depois dar show aos finais de semana, ao som dos Bee Gees, Diana Somer, entre outros. Quando colocava a minha sandália "francesinha" e a saia rodada, não tinha pra ninguém, me transformava numa "Sandy" e não faltavam "Tony(s) Manero(s) querendo dançar comigo e transformar todos os sábados em "Saturday night fever".

Mas o tempo passou e não virei artista. Sou só uma mulher do povo, mãe de filho e com um desejo enorme de ser "Adélia". Ainda buscando me acostumar com a ideia de ser uma jovem senhora de 49 anos. Mas, como Adélia mesmo diz: "não posso mais fazer curso de dança, escolher profissão, nadar como se deve."... Fazer o quê, né?

Mas continuo com a alma de artista.

Qu'é-de mamãe?

domingo de sol, sem nuvens. hoje, eu queria mamãe, sem fadiga, me respondendo com doçura. a gente ia sair pra passear de braços dados, caçar uma sombra a beira de um corguinho desses que tem por aí, sentar e depositar os pés. ficar sentindo a friagem da água até adormecê-los. mas qu'é-de mamãe para fazer bolas de carne pra gente comer com pão no passeio? qu'é-de mamãe pra gente fazer piquenique no dondóia?

sábado, 1 de agosto de 2015

Carta

Baldim, 23 de abril de 1980.

Oi mãe,
Como estão as coisas por aí? Por aqui, só saudades. Demais... Da Senhora e dos meninos. Todos... Penso, penso e não consigo achar uma solução. Como vamos viver assim, mãe? Vocês longe, e eu aqui, sozinha com o vovô? Eu tento esconder, mas ele percebe a minha tristeza. É anoitecer e eu me enfio embaixo das cobertas, para dormir logo e para chegar o dia seguinte logo e o tempo passar bem rápido e chegar novamente o dia de ir visitar vocês. Vovô disse que vai comprar uma televisão para eu me distrair. Tadinho, mãe... A aposentadoria dele não dá pra comprar nem um fogão a gás, que eu sonho há anos, quanto mais uma TV, que é muito mais caro. Quando chove, colocamos a lenha pra dentro de casa, porque acender fogo com lenha molhada, ninguém merece, né? A Senhora sabe bem do que estou falando. A cozinha fica meio bagunçada e a Senhora sabe como eu sou chata com arrumação, mas fazer o quê, né? Mãe, por que que tem que ser assim? Por que não podemos ficar todos juntos, conviver? Não existe a menor possibilidade de vovô mudar para Belo Horizonte mãe, ele não aguentaria. E as criação? As galinhas, os porcos? A plantação de fumo? A Senhora acha que ele aguentaria ficar sem isso? Por falar nisso, a plantação de fumo deu bastante esse ano, quase não teve pulgão nas folhas. Eu ajudei ele a fiar e rendeu bastante. Fiamos também fumo preto. Quando eu for, mês que vem, vou levar um pedaço para a Senhora experimentar. Mãe, outro dia o vovô passou mal. Eu tive que ir correndo chamar o Iton para vir socorrer ele. Sempre que ele adoece, eu vou até a igreja, rezo e faço promessa. Dessa vez, não fui, mãe. Por favor, não conte isso pra ninguém, só tenho coragem de contar pra Senhora. Das outras vezes que ele adoeceu, ela ia melhorando, e eu ia ficando alegre, assim, junto. Dessa vez mãe, a melhora dele foi me dando uma tristeza. Sabe por que, mãe? Porque só vejo possibilidade de mudar para Belo Horizonte e ficar junto de vocês, quando ele morrer. Isso não é terrível, mãe? Mãe, reze por mim. Não esqueça de acender a vela em intenção do meu anjo da guarda. Não esqueça do meu segredo. Peça a quem ler a carta para a Senhora, para não contar isso pra ninguém. Por favor, mãe. Eu tenho muita vergonha desse sentimento. Só estou escrevendo isso, porque além de mãe, a Senhora é também minha amiga. Fica com Deus.
Bença.

Sobre filhos

Novamente a casa ficou quieta, silenciosa. O computador voltou pra mesa da cozinha e o café da manhã foi somente na companhia do Scooby, que desanimado, nem cobiçou o meu pão.

Qué'de a algazarra dos últimos dias? Qué'de os meninos correndo pelo casa? Qué'de a barraca montada no quintal, onde as crianças dormiram, pois a casa pequena não cabia todo mundo?

A amiga, de 'milianos', retornou à cidade. Quando veio aqui, pela primeira vez, era ainda uma criança. Hoje, já é mãe de filhos, profissional respeitada. Mas tem uma essência, ali, que não mudou. É a mesma menina espevitada da infância, extrovertida toda vida, conversando com a cidade inteira.  "Sou quase direita, se o senhor confiar em mim, posso trazer o dinheiro depois", ela brincou com o moço do açougue; "essa turma tá bonita, hein?" gritou para o grupo que caminhava do outro lado do asfalto, quando íamos ver o pôr do sol. Sempre disposta, assumiu o fogão e fez mil coisas gostosas. Todos esses dias, o riso dela ecoou pela casa, trazendo uma energia boa. Sempre animada, topou todos os passeios, enfiou o pé na poeira do caminho, se arriscando a pegar alguns carrapatos.

Mas, o mais bacana mesmo, foi ver os nossos filhos convivendo, se divertindo juntos, inventando brincadeiras. Um sentimento novo brotou em mim. É como se fosse um prolongamento de todo amor e admiração que temos pela família uma da outra. Ver os filhos dando continuidade a isso deixou o meu "coração amolecido como um figo na calda".

O tempo não para


Parafraseando o poeta: quando se vê, já são 10 horas, quando se vê, já estamos em julho, quando se vê, passou-se 1 ano. Quando se tem prazos a cumprir o tempo é uma espada, constantemente, cravada em nossa cabeça. A ave-maria saída do alto-falante da igreja, todo final de tarde, me comove por demais. Mas também me angustia, pois é o sinal de que mais um dia chegou ao fim e nem sempre foi produtivo. As mangueiras,  novamente em flor, também anunciam: o tempo não para.  Plantei milho, ele embonecou, pendoou, madurou, colhi, foi cozido, transformou-se em mingau, em bolo. Plantei quiabo, brotou, cresceu, colhi, até perdeu. E agora está lá, uma dezena de pés, sem folhas, que me recuso a arrancar. Talvez, seja na tentativa de deixar o tempo um pouco em suspenso, afastar um pouco a ponta dessa espada que não me deixa fazer nada sem me sentir culpada. Mas não adianta, os pés de quiabo estão lá, paralisados, depois de uma produção que nem dei conta de comer toda, mas a floração do tomate cereja avisa que não há formas de driblar o tempo e como diz o poeta, "agora é tarde demais para ser reprovado". Sigamos então...

Sonhos

ontem, o menino chegou de viagem. foram só alguns dias, mas eu e o scooby já estávamos sentindo falta, das conversas e dos afagos. arrumei o quarto a espera dele, troquei a roupa de cama, ajeitei as poucas roupas no caixote improvisado em armário, lavei o tênis usado para andar de skate. quando ele chegou, deitei na outra cama e ficamos conversando, sonhando com o fim da tese, minha aprovação num concurso, um salário legal e uma casa só nossa. ele quer um quarto só pra ele e sonha com um armário para as roupas:
- sem caixote reciclado mãe, por favor! quero uma gaveta para cuecas e outra para meias. cansei dessa sacola aí, onde elas ficam guardadas. tênis? pode ser só dois mesmo: um para sair e outro para andar de skate. só tenho dois pés! quero também uma escrivaninha para fazer as tarefas de escola, uma caixinha e um apoio para minha guitarra e outro para o violão. shapes, eu quero vários.
- Ih... shapes você vai ter que comprar com o seu próprio dinheiro. o armário eu dou. agora, vários shapes?
- pô mãe, não quebra a vibe! ah, quero também pôsteres na parede: tupac, iron maiden,  black sabbath,  acdc e um de skate. ah, e quero uma estante para os meus livros. mãe, imagina poder fazer uma compra de supermercado decente, com biscoitos e chips?
- e desde quando biscoitos e chips são decentes, menino?
- mãe, posso sonhar? não quebra a vibe...

pode filho. podemos! afinal nosso sonho não é assim, tão impossível de ser realizado.

Oração

o dia amanheceu  com um céu escandalosamente azul e sem uma nuvenzinha sequer. a amiga convidou para o sítio: "tenho muito trabalho, mas a preferência, hoje, é para os amigos, venha!". recusei, não posso! sei que a vida lá fora explode em bombas e em dádivas de toda natureza, drummond já me contou. mas hoje, a minha luta é com as palavras. preciso arrancar mais um capítulo dessas páginas em branco. vou até o meu altar particular, ajeito a foto de  santa clarice e a de são joão guimarães rosa. acendo uma vela. de um lado, abro um livro de adélia; do outro, um de drummond.  leio em voz alta "o lutador" e "antes do nome". esta é minha oração. adélia, com a calma que lhe é frequente, sussurra:  pegar a palavra na mão, tal qual um peixe vivo, é coisa infrequentíssima. drummond ratifica: algumas palavras são fortes como um javali, outras precisam ser enlaçadas, seduzidas, gostam de carícia. é preciso humildade para persuadi-las, algumas são sistemáticas, viram-nos o rosto. fruir a essência de cada palavra é um duelo. adélia insiste: mais que a palavra, o que importa mesmo é a sintaxe. a palavra é apenas disfarce. e assim sigo, sem zanga ou desgosto, sem queixume, até que o ciclo do dia se conclua.