segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Pai, ô pai...

"Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão."
(Poema esquisito, Adélia Prado)

José Soares Gonçalves. Seo Zezinho Miçangueiro, como era conhecido. Eu meço 1,55 m e ele conseguia ser menor do que eu. Grande mesmo era o coração.Tinha doença de chagas, morreu por causa dela. O coração foi crescendo, crescendo até não caber mais no peito e parar de bater. Foi picado pelo barbeiro na casa de pau a pique, lá em Santo Antônio do Baú, povoado onde ele começou a vida com minha mãe.

Tenho muita inveja dos meus irmãos e irmãs mais velhos que têm sempre mil histórias de afeto e carinho, para contar sobre ele. Eu, das filhas mais novas, peguei o casamento já no final. Lembro mesmo é da violência doméstica, das brigas, ele querendo bater na mamãe, ela querendo se separar, mas ainda com filhos pequenos. Uma mulher analfabeta, o que fazer?

Tenho poucas lembranças dele, porque convivi pouco e mesmo quando morávamos juntos, quem ralhava com a gente era mamãe, ele nunca dizia nada, não se metia na criação dos filhos. Lembro dele, reformando as caixas de madeira para levar "miçanga" (frutas e legumes) para a Ceasa, em BH. Lembro que às vezes, ele chegava da rua, já tarde da noite e fritava carne de porco. Um cheiro bom invadia a casa e nessa hora sempre dávamos um jeito de levantar da cama, para fazer sei lá o quê, só para passar na cozinha e ouvir ele oferecer: "come um torremo, minha filha". Eu não esperava ele falar duas vezes.

Lembro dele tentando aprender a tocar cavaquinho pra acompanhar a folia de reis, que era um dos sonhos da vida dele. Um dia, nessa mesma mesa que escrevo, em uma das nossas conversas, mamãe me disse: "ele era péssimo marido, mas era um bom pai". Eu tomei um susto! "Como assim, mãe? Eu cresci achando que ele era "o marido safado que trai a esposa" e agora a Senhora me diz isso? Depois que ele morreu?" Rindo, ela insistiu: "mas ele era um pai amoroso, sempre foi". Mamãe sempre falava com sua voz grave: "se seu pai estiver no céu, eu quero ir para o inferno. Não quero encontrar com ele não."

Eu, solidária à mamãe, sempre fui respondona, sofrendo junto com ela quando o víamos subir para o puteiro, no final da rua. Até me envolvi em uma confusão com uma amante dele, que um dia pediu dinheiro, quando eu passava perto deles. Senti que era para me provocar, e depois daquele dia, sempre que passava por ela, eu pedia dinheiro a quem estivesse comigo. Um dia ela quis me bater, eu me escondi na casa de uma amiga. Ela, a amante, foi atrás do meu irmão reclamar de mim, disse que eu a estava provocando. Meu irmão saiu em minha defesa: "eu vou é bater em vocês dois, porque você e o papai são muito safados", ele disse. Me senti amada, com meu irmão me defendendo. Vai ver é por isso que temos uma relação de afeto tão forte, até hoje.

Só desconstruí a imagem do "homem safado que traía a esposa", anos depois de sua morte, quando eu já desejando ser mãe, quis conhecer o lugar onde ele começou a história com minha mãe: Santo Antônio do Baú. Era 6 de janeiro, dia de Reis, remate da folia. Naquele dia, a folia do Baú completava 50 anos de existência e as crianças da escola fizeram uma linda homenagem. Tomei outro susto quando vi que meu pai era um dos homenageados, pois foi um dos fundadores da folia. Todos ali tinham histórias para contar sobre o bom humor do papai e o mau humor da mamãe. De como ele gostava de receber a folia de reis em casa e mamãe ficava extremamente irritada, pois a dança estragava o chão de terra batida que ela cuidava com tanto zelo, inclusive passando barro do córrego para o chão ficar branquinho.

Certa vez, em Sete Lagoas, quando eu acompanhava a folia de reis de Baldim numa caravana, conheci um senhor, um folião, que caiu em prantos quando descobriu que eu era filha do Seu Zezinho Soares. Entre soluços, aquele 'tiozinho', já alterado pela cachaça que ia bebendo durante a peregrinação da folia, me disse que o primeiro sapato que ele calçou na vida, tinha sido presente do papai. Que ele, ainda menino, trabalhou para o papai ajudando a colher quiabo e que descalço, um dia furou o pé num prego. Naquela mesma semana, quando papai voltou da Ceasa, trouxe um par de botinas para ele. Foi outro susto: "como assim, papai era uma pessoa sensível?". Foi então, que a 'ficha caiu' e eu percebi que como todo mundo, papai tinha defeitos e qualidades.

"Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia."

(Poema Esquisito, Adélia Prado)

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