segunda-feira, 21 de março de 2016

"Aqui, ninguém vai pro céu"

 Às 6:15 da manhã, quando o motorista deu a partida, o menino avisou: "tô desligando do mundo, hein mãe"? Colocou os fones, coluna ereta para não amassar o black, colou a cara na janela e foi observando a paisagem que já sabe de cor.
Sem ninguém para conversar, também coloquei meus fones e fui observando as pessoas que entravam no ônibus. Um jovem, em pé, à minha frente, segurava no bagageiro, deixando à mostra a tatuagem na parte superior interna do braço esquerdo, em letra cursiva: Maycon.
Ao seu lado, outro jovem, todo arrumado: bermuda saruel, crocs, celular no bolso e material de pedreiro na mão.
O trocador mal-humorado, reclamava o tempo todo da linha que não é dele, que está substituindo o colega, que não conhece os pontos de ônibus no meio da estrada sem nenhuma identificação. "Um passinho pra trás, por favor", ele pede. E numa coreografia de barrigas e bundas se mexendo, todos obedecem.
Com sua voz doce e suave, Criolo canta no meu ouvido esquerdo, já que o fone só funciona de um lado: "é, dizem que não é pra você, esta história de vencer, de sonhar e conquistar. É, mas eu digo que é pra você, essa história de vencer, de sonhar e conquistar..."
Às 7:35h ainda nem atravessamos o Rio das Velhas. O trocador melhorou o humor e agora conversa com uma moça loirinha que não conseguiu lugar para se sentar. Ela reclama dos poucos ônibus em circulação. Ele concorda com ela.
"Dá licença, dá licença!", alguém vem gritando lá de trás. "Motorista, para no próximo, por favor!?" Novamente o balé de barrigas e bundas se move, abrindo espaço para a tiazinha descer. "Vai com Deus!" grita alguém. "Fica com ele também!", ela responde.
O rapaz com a tatuagem no braço informa pra loirinha que vagou lugar lá no fundo. Sem ninguém pra flertar, o trocador, visivelmente aborrecido, vai conversar com o motorista.
Duas horas depois estamos em Lagoa Santa. Criolo me convida para Bogotá, diz que lá é melhor que Pasárgada. Eu imagino ele e Dona Vilani na cozinha, na casa do Grajaú. A mãe lendo Manuel Bandeira para o filho, enquanto ele lava a louça, sem sequer imaginar, que anos depois, a referência ao poema ia virar letra de música.
Coincidentemente, quando Criolo começa a cantar "Não existe amor em SP", estamos chegando em BH. O menino chama minha atenção para um painel de grafite, lindo, na av. Pedro I. Curiosamente, Criolo canta: "onde os grafites gritam, não dá para entender..." "Aqui, ninguém vai pro céu..."

Às 08:40 estamos na Pampulha. Mais uns 20 minutos e chegamos na região do IAPI. Enquanto Emicida e seus amigos, dá um monte de soco no meu estômago com a música "Mandume": "nunca deu nada pra nós, caralho; nunca lembrou de nós, caralho", o menino chama minha atenção para dezenas de usuários de crack, na cracolândia belo horizontina.
"Chegamos na capital, mãe", ele diz. "Hoje é dia da desigualdade social e da injustiça ser jogada na nossa cara." São 09:15h.

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