domingo, 16 de abril de 2017

Janela de ônibus

"Janela de ônibus é danado pra botar a gente para pensar, ainda mais quando a viagem é longa". Quem diz é o poeta Miró da Muribeca.
Toda semana é isso. Colo a cara no vidro da janela e vou pensando na vida. A paisagem já sabida de cor me deslumbra como se fosse a primeira vez. O trajeto de estrada de chão entre Vila Amanda e Vargem Grande, embora acrescente quase 1 hora ao percurso, é o meu predileto.
Os sujeitos que sobem e descem do ônibus parecem personagens saídos dos contos de Guimarães Rosa. Quase me intrometo nas conversas, mas me contenho. As casinhas abandonadas na beira da estrada me lembram Bertolt Brecht:
"As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar, grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se, mas ainda necessitam de nossa compreensão. E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas."
Da rocinha o tiozinho acena para o ônibus. O milho já foi colhido, o quiabeiro está em flor. Não tem como não lembrar do papai que fez tantas vezes esse percurso levando as verduras que plantava como meeiro em terras dos outros. Tinha que fretar um caminhão, pois o máximo que conseguiu de meio de transporte foi um jeep velho, que depois vendeu para o meu irmão. Morreu sonhando com a reforma agrária e com um pedacinho de chão que fosse seu.
Nesse momento sempre coloco Vander Lee para cantar pra mim:
"Falar do Brasil sem ouvir o sertão
É como estar cego em pleno clarão
Olhar o Brasil e não ver o sertão
É como negar o queijo com a faca na mão
Esse gigante em movimento
Movido a tijolo e cimento
Precisa de arroz e feijão
Quem tem a comida na mesa
Que agradeça sempre a grandeza
De cada pedaço de pão
Agradeça
Clemente que leva a semente em seu embornal
Zezé e o penoso balé de pisar no cacau
Maria que amanhece o dia lá no milharal
Joana que ama na cama do canavial
João que carrega a esperança
Em seu caminhão pra capital.
Lembrar do Brasil sem pensar no sertão
É como negar o alicerce de uma construção
Amar o Brasil sem louvar o sertão
É dar um tiro no escuro
Errar no futuro da nossa nação."
Certa vez, em Sete Lagoas, quando acompanhava a folia de reis de Baldim numa caravana, conheci um senhor, um folião, que caiu em prantos quando descobriu que eu era filha do Seu Zezinho Soares. Entre soluços, aquele 'tiozinho' já alterado pela cachaça que ia bebendo durante a peregrinação, me disse que o primeiro sapato que ele calçou na vida tinha sido presente do papai. Que ele, ainda menino, ajudou papai a colher quiabo e que descalço, um dia furou o pé num prego. Naquela mesma semana quando papai voltou da Ceasa levou um par de botinas para ele. Choramos juntos, ele por estar diante da filha do Séo Zezinho, eu por ser apresentada a um lado sensível e solidário do meu pai que eu não conhecia.
"Janela de ônibus é danado pra botar a gente pra pensar, ainda mais quando a viagem é longa".

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