sábado, 14 de janeiro de 2017

"É preciso não ter filosofia nenhuma"


Há mais de um mês que não fazia a minha caminhada. Hoje, consegui vencer aquela vozinha interior que me convenceu durante tanto tempo a não ir. Coloquei os fones de ouvido e Ceumar foi me embalando:
"Divinha o que primeiro
vem amor ou vem dindim
dindinha, dê dinheiro
carinho e calor pra mim"...
Algumas semanas e o trajeto está todo diferente. Alberto Caeiro tem razão:
"Não é o bastante não ser cego
para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma."...
As mangas praticamente acabaram. A horta da Dona Maria continua bem cuidada. Os pés de mamão, ao contrário do que nasceu aqui, junto da janela azul, estão carregadinhos e o pés de quiabo já produzem. A casa abandonada onde os meninos faziam as janelas de alvo, agora tem moradores novos e está toda cercada com uma cerca linda, de bambu. Os filhotinhos da cadela preta nasceram..Já estão todos serelepes pela rua. Os tamarindos da casa da Maria Geralda também acabaram. A trave do campinho foi refeita e a casa dos meninos que moram em frente, agora tem uma varanda. Um deles me cobrou as fotos que tirei e nunca entreguei. "Cadê as fotos"? O menorzinho me perguntou, pela milésima vez, assim que me viu. E eu dei a mesma resposta de sempre: "Vou imprimir e trazer pra vocês. Ficaram lindas!" Ele sorriu, resignado.
O caminho é o mesmo, mas eu sempre me espanto, como se fosse a primeira vez. Sempre tem uma florzinha nova, hoje tinha umas brancas, lindas. Perdi o auge da floração dos bem-me-queres do lote vago. Mas ainda tem uma florzinha aqui e acolá. "Na volta eu colho", pensei.
O caminho está todo margeado com aquelas florzinhas amarelas, de carrapicho. "Isso não é flor, é mato!" meu irmão, sempre diz. Eu retruco: 'Como que é mato? É flor! Tem caule, folhas, pétalas!" Ele abandona a discussão, mas não sai convencido.
Os pés de jamelão estão carregadinhos e cheio de crianças com as roupas todas manchadas de roxo do caldo da fruta. Quando chego no trevo, Ceumar canta em meus ouvidos:
"O amor me veste com o terno da beleza
E o saloon da natureza
Abre as portas preu dançar
Diz o que tu quer que eu dou
Se tu quer que eu vá eu vou"...
Na volta enfrento o mato alto para colher os bem-me-queres. Piso com cuidado, com medo de cobra. Aqui, meus medos são outros. Tão diferentes dos medos da metrópole. O cheiro da fumaça dos fogões a lenha e da gordura de porco anunciam que já é hora da janta.
Quando chego no portão, Fridinha me recebe como se eu estivesse, há tempos, longe de casa. É sempre assim, não importa quando tempo demoro, se 1 hora ou 1 mês. E eu, que até pouco tempo não conhecia o afeto dos bichos. Hoje, completamente convertida aos cães, me comovo com essa cadelinha que, até um tempo atrás, quando a encontrava pela rua, evitava olhar nos olhos, certa de que, se isso acontecesse, eu cairia de amores. Dito e feito. Foi olhar pra ela e trocamos o segredo que liga os humanos aos animais.

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