sexta-feira, 31 de março de 2017

Herança

Sexta-feira fui assistir "Processo de conscerto do desejo", do Matheus Nachtergaele. Assim mesmo, com "S" e "C". Os ingressos se esgotaram rapidamente, mas o Universo providenciou uma cortesia e fui com uma amiga preciosa, que se acabou de tanto chorar. Como o próprio Matheus diz, não é um espetáculo, mas uma espécie de ritual. Sua mãe se matou quando ele tinha 3 meses. Quando completou 16 anos, o pai lhe entregou uma pasta com cerca de 30 poemas escritos por ela. Matheus diz que a conheceu através desses escritos. Foi a herança que ela lhe deixou, os poemas e uma máquina Olivetti onde os datilografou. Matheus realiza uma espécie de Quarup em cena. Ele pranteia o morto e no final libera sua alma para outra dimensão. Na última cena, o ator coloca as pessoas para dançar, numa valsinha que ele mesmo compôs, em parceria com o violonista que o acompanha no palco, Luã Belik. É de uma boniteza! Assistindo ao espetáculo não tem como não pensar na relação entre mãe e filhxs. Fiquei lembrando de mamãe e da herança que me deixou. Uma tira dessa casa velha com a janela azul de tramela. Mas não só. Hoje, me vejo muito parecida com ela em muitas coisas. Desde o jeito de fazer a carne de porco que agora mesmo eu preparo para deixar pronta para o menino, passando pelo modo de quarar as roupas brancas na grama, a forma de pendurá-las no varal, o deslumbre com cada brotinho que surge neste quintal, até a postura feminista de igualdade que ela sempre reivindicou. A mania de autossuficiência, de não depender de ninguém, de resolver tudo sozinha, e de ter projeto. Até o finalzinho de vida mamãe tinha projeto. Reformar o telhado, fazer a varanda, pintar a casa... Dona Dulce concentrava suas energias e economias até conseguir realizar o intento, e quando finalizado, surgia outro, em seguida. Com mamãe aprendi a viver dentro do orçamento, a não gastar mais do que ganho, a customizar e reciclar tudo. Aprendi a ser só e a gostar da minha própria companhia. As marcas dela estão por toda parte nessa casa velha. Nas panelas que usava, nos forrinhos da mesa e do armário, na janela azul de tramela onde feito uma namoradeira, se debruçava com a mão no queixo, reflexiva, pensando sabe-se lá no quê. Matheus Nachtergaele conSerta o seu desejo num conCerto onde canta, dança e diz os poemas da mãe. Eu conserto o meu, todos os dias, sentindo a força de Dona Dulce em cada objeto dessa casa. Uma casa carregada de história, cheia de marcas. O piso já gasto, a louça descascada, a madeira surrada das portas e janelas. Objetos felizes que tantas vezes foram colhidos pelas mãos calejadas de mamãe. Um chão tantas vezes pisados pra lá e pra cá. Quando no final de semana eu venho correndo pra cá, as pessoas não entendem pra quê isso, se tenho que retornar para BH na segunda-feira. Não entendem que eu preciso disso! Preciso sentar nessa mesa e olhar para o morro; observar o beija-flor vigiando o bebedouro; preciso dos cachorros enrodilhados perto de mim; preciso colher a acerola, a pimenta biquinho, acompanhar o crescimento do mamão. Preciso ouvir as notas de utilidade pública e a Ave-Maria no alto-falante da igreja. Preciso ouvir o silêncio, os passarinhos, sentir o sol na pele enquanto mexo no quintal. Esta é a herança que mamãe me deixou. Este é o meu conSCerto do desejo. São essas coisas que me fazem feliz.

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