domingo, 19 de março de 2017

Patriazinha

A caminho da avenida Antônio Carlos fui repetindo pra mim mesma: Carmésia, Carmésia, Carmésia. Como na infância, quando mamãe mandava buscar alguma coisa na venda ["Meia liva de café e 10 cm de fumo preto"]. É que da última vez, quando a minha ficha caiu que o ônibus não era BH/Baldim, ele já ia longe. Quando o veículo parou, perguntei ao motorista: "Baldim?". "Sim! Com conexão em São José de Almeida." O tempo que falávamos baldeação ficou pra trás. Conexão! Agora somos todos modernos. Me acomodei no banco desconfortável e coloquei os fones de ouvido. Deu para ouvir o finalzinho do programa "Trem caipira" na 100,9, rádio Inconfidência FM. Às 7h começou o jornal que discutiu a falácia do déficit da previdência. Jornalismo sério. Um alento. Abri o livro "A coisa à volta do teu pescoço" e fui em companhia de Chimamanda. Em Lagoa Santa o ônibus virou lotação e foi parando em cada ponto, apanhando diaristas e serventes de pedreiro à caminho das casas de campo das redondezas. A moça que sentou ao meu lado reclamava da grosseria do patrão, sempre maltratando os empregados. "Sai de lá, boba!", disse a colega. "Não posso. Emprego tá difícil, tenho que tolerar." Atrás de mim, o moço reclamava do valor que queriam pagar por quase 10 dias de serviço pesado. "E ele é empresário! Mas ninguém vê o lado do pobre! Se acha que tá caro, por que ele mesmo não faz o serviço?" O rapaz ao lado concordou e também tinha histórias para contar. Às 8 em ponto passamos sobre a ponte do Rio das Velhas. E pensar que esse rio já foi navegável. Quando a Serra do Cipó surgiu, imponente, à frente, era sinal de que já havíamos passado da metade do caminho. Em São José de Almeida, o carro que nos levaria a Baldim já estava à postos. Perguntei se podia ir ao banheiro. O motorista assentiu com a cabeça. Na porta, uma senhora franzina, com uma caixa de sapatos com um rolo de papel higiênico e um recipiente feito de garrafa pet, cheio de moedas. "1 real", ela disse. Na volta agradeci a gentileza do motorista. Depois do trevo, ele quebrou à direita e eu fechei o livro, pois a leitura ficou impossível com o sacolejo na estrada de chão. Em Vargem Grande avistei a casinha branca de janelas azuis, meu sonho de consumo. A plantação de eucaliptos vai avançando sobre o cerrado. Que tristeza! Mais 20 minutos e chegamos a Vila Amanda. Olho para o que resta do cerrado e lembro das aulas de geografia no ensino fundamental: árvores baixas, com troncos retorcidos, meu quintal. Lembro também de Guimarães Rosa explicando para seu tradutor alemão o que é a VEREDA: "a vegetação é a do cerrado: arvorezinhas tortas, baixas, enfesadas (só persistem porque têm longuíssimas raízes verticais, pivotantes, que mergulham a incríveis profundidades)." Às 9:11 chegamos em São Vicente. Uma volta na praça, desce gente, sobre gente e às 9:30, em ponto, chegamos a Baldim. Eu quase corro para chegar logo à casa velha de janela azul. No portão, sou recebida com festa por Scooby e Fridinha. Abro a janela e contemplo meu quadro preferido: o telhado da casa da Dona Maria do Heitor, com o morro ao fundo. Minhas perpétuas, cheias de raízes, seguem floridas. Dois bem-me-queres sobreviventes na jarrinha na janela. As flores brancas que colhi no dia anterior à viagem secaram, mas continuam no lugar que deixei. Vejo um respeito do menino e do meu irmão nesse gesto. O mamão está enorme, mais um pouco e vai dar pra colher. Baldim é Minas em mim, Minas comigo. Baldim é minha patriazinha!

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