sexta-feira, 3 de março de 2017

"O que sinto ainda não tem nome"

Ontem, minha amiga, Vânia, que estava pesquisando seus arquivos a procura de fotos para um livro sobre congado que vai publicar, me mandou algumas . Fui dormir comovida com tudo que as imagens me suscitaram. São fotos de cerca de uma década atrás. O menino por volta dos 4 anos, com seus dentinhos de leite; eu, 10 anos mais jovem, alguns quilos a menos. Mas algumas questões são recorrentes. Minha amiga, Vânia, e Paixão, seu marido, estão sempre presentes em nossa vida e em nossas histórias. E as festas de congado são sempre o cenário que permeia tudo isso.
Em 2004, fui demitida de um emprego onde eu era muito infeliz. Fui para o boteco comemorar, só para se ter uma ideia. Desempregada, resolvi voltar a estudar. Lembro do dia que voltando do centro da cidade, dentro do ônibus avistei Vânia, em seu carro ao lado. Ela fez sinal e eu desci no ponto seguinte. Entrei no carro e falei pra ela do desejo de voltar a estudar. Contei da vontade de fazer uma especialização em lazer, onde ela era professora. "Quero pesquisar o congado, você acha que dá?" "Claro que sim!", ela disse. E selamos ali, uma das nossas tantas parcerias. Ela foi minha orientadora no trabalho de conclusão de curso, uma monografia sobre a festa da Guarda Feminina de Nossa Senhora do Rosário, no bairro Aparecida. A Guarda da Maria, como é conhecida. O trabalho ficou verde, imaturo, bobinho até, mas foi o que dei conta de fazer na época. Funcionou como um rito de passagem para que eu saísse do lugar de espectadora e me assumisse como pesquisadora da Festa. Eu, que cresci ao som dos tambores do catopê e da folia de reis; coroando Nossa Senhora, sendo pastorinha nos autos de Natal. Inaugurava ali, um outro olhar sobre o congado.
Depois, em 2007, fui para Viçosa fazer o mestrado. O tema da minha dissertação também nasceu das conversas com Vânia. Foi de um antigo projeto dela que roubei a ideia de pesquisar gênero no congado. E, de novo, voltei ao bairro Aparecida para pesquisar a Guarda Feminina. Vânia participou da banca de defesa e me arguiu sem dó. Foi ela também que me ajudou no título da dissertação: Salve Maria(s): mulheres na tradição do congado em Belo Horizonte, MG. O trabalho ficou bem melhor que a monografia da especialização, mas ainda apresenta deficiências teóricas e metodológicas. Mas, de novo, era o que eu dava conta na ápoca.
Foi durante uma conversa nossa em seu sítio na região metropolitana de BH, que anos depois, nasceu a ideia do projeto para o doutorado. "Por que ao invés de pesquisar mulheres, você não foca na trajetória da capitã Pedrina?" Vânia sugeriu. Nascia ali, a tese que defendi ano passado: "Muita religião, seu moço!: os caminhos de uma congadeira". Um trabalho mais maduro, mais parecido comigo, mas com mais referências literárias que antropológicas. Foi, inclusive, Guimarães Rosa e Riobaldo, que me emprestaram as lentes para enxergar que a experiência de Pedrina era "muita religião" e não sincretismo. Clarice, Mário Quintana, Fernando Sabino, Ana Maria Gonçalves e até o rapper Rico Dalassan, foram algumas das referências literárias que me ajudaram a pensar a trajetória da capitã de congado.
As fotos enviadas por Vânia, ontem, são todas de festas de congado. O menino sempre presente. Na Comunidade dos Arturos, na festa da Abolição, no 13 de maio; na coroação dos reis festeiros, na festa de outubro no bairro Aparecida e até no evento "Mil Tambores" que aconteceu na Serraria Souza Pinto, em 2005, em comemoração ao dia da Consciência Negra. Foi ali que ouvi, pela primeira vez, a voz de Pedrina cantando em banto.
Com tantas lembranças, meu coração ficou amolecido como um figo na calda. Tem uma foto da Vânia olhando para o menino com tanta admiração e uma outra dele, no colo do Paixão, marido da Vânia e com a Júlia Dias, filha do Tizumba, junto. Júlia, que se tornou um mulherão e que assistimos dias desses, no espetáculo "Oratório: a Saga de Dom Quixote e Sancho Pança". Daí, entendi porque anos atrás, numa noite no sítio da Vânia e do Paixão, enquanto assávamos bolo e fazíamos pipoca, o menino virou pra mim e perguntou: "Mãe, eu não posso ter assim, tipo, uns padrinhos informais"? Criado agnóstico, eu até insisti com ele que se quisesse, poderia ser batizado, fazer catequese, etc. Mas ele afirmou, seguro, que não. Queria era só os padrinhos mesmo. E escolheu ali, a Vânia e Paixão. Ficamos todos muito comovidos e além de amigos, agora, somos também compadres.
Gratidão é pouco. Como diz Clarice, o que sinto ainda não tem nome.

Nenhum comentário:

Postar um comentário