domingo, 26 de novembro de 2017

Racionais MC's

Ainda sobre ontem à noite...
É tão bom estar entre os nossos. Não precisar, por exemplo, explicar racismo porque ali todo mundo já tomou um baculejo ou um enquadro da polícia. Tem a ver com um sentimento de pertença e pertença tem a ver com identificação, identidade. Era um público majoritariamente negro e da quebrada. E, apesar de serem jovens em sua maioria, a diferença de idade não me causou nenhum estranhamento. Quando a gente faz a travessia da consciência racial, um processo que, às vezes, leva anos, não tem mais volta. E eu penso que na minha travessia, as letras de rap foram fundamentais na construção da minha subjetividade negra e periférica. Me dá uma alegria imensa saber que ela foi se construindo junto com a do menino. Muito da consciência racial e social que ele tem hoje, foi construída ouvindo rap. Ontem, na Serraria Souza Pinto, onde tantas vezes eu o levei pequenininho, como no evento "Mil Tambores", que ele tocou com sua mini-alfaia. Foram tantos os shows que ele curtiu enganchado no meu pescoço, que nem sei mais precisar. Ontem, ele preocupado em me proteger e proteger a tia, me fez lembrar de como foi importante, que mesmo sob protesto, durante anos, eu segurasse firme em sua mão na hora de atravessar a rua. Ou carregasse a matulinha com papinha, água, suco e fraldas para tantos eventos legais que nós fomos. Teve um momento que um rapaz enorme se postou bem na minha frente e o menino o cutucou e apontou pra mim, como a dizer, "cara, não tô acreditando que você vai ficar na frente dela". E o rapaz meio constrangido se afastou. O show de ontem foi por tanto tempo esperado, que nem sei... Quando ele tinha 12 anos não pudemos ir, pois mesmo acompanhado dos pais, só maiores de 14. Em outras oportunidades não tínhamos grana e ontem, enfim, o sonho foi realizado. É tanto preconceito que envolve a cultura hip hop que eu duvido que essas pessoas tenham alguma vez parado para ouvir as letras dos raps. Muitos falam do respeito aos mais velhos, da necessidade de ouvir os pais, reverenciam as mães que criam seus filhos sozinhas, e como diz o menino, "é a realidade na quebrada, né, mãe?" São letras que trabalham a autoestima de uma galera preta que não tem grana para frequentar terapia. Um orgulho de ser da quebrada que é reforçado a cada letra que ouvimos. E a consciência de que ser pobre não tem nada a ver com uma questão individual ou com a falácia da meritocracia, mas com um contexto de quase quatro séculos de escravidão e uma abolição que nunca se efetivou de fato. Um país que embora tenha sido construído com sangue e suor do povo negro é um dos mais racistas do mundo. Eu, mesmo não torcendo para nenhum time de futebol me emocionei com a festa dos 33 anos da Galoucura. Se engana quem acha que é só sobre futebol. Tem a ver com pertencimento, com coletivo, como dizia uma das faixas que enfeitava o salão, uma bandeira não chega nem se sustenta sozinha no estádio, precisa de muitas mãos. E, embora já estivéssemos cansados pela espera de cerca de duas horas, foi lindo ver a primeira mulher da torcida ser homenageada, a cozinheira (em memória) que nas viagens para outras lugares era a responsável pela comida dos torcedores que iam no ônibus. Foi lindo ver a velha guarda contando suas histórias de jogos de décadas atrás. Foi lindo ver o Leonardo Péricles do "Movimento de luta nos bairros, vilas e favelas" subir ao palco e falar das semelhanças entre os moradores das ocupações urbanas que lutam pelo direito à moradia e os milhares de torcedores excluídos dos estádio gentrificados durante a copa de 2014. Foi mágico quando o letreiro em vermelho escrito Racionais se acendeu e os quatro pretos mais perigosos do Brasil subiram ao palco. Eu, que descobri o rap tardiamente, quando por volta dos 7 anos o menino chegou em casa cantando negro drama, resolvi prestar atenção no que ele estava ouvindo e cantando. Me converti ali. Ali, iniciei a minha travessia. Ver o negro protagonista no palco, sujeito de sua própria história e servindo de referência para outros milhares de negros me encheu de esperança. Ver o RZO cantando junto, todos, com exceção de Mano Brown que vestia branco, vestidos de preto por dentro e por fora, como diz a letra. KL Jay concentrado em suas pick'ups, Ice Blue com seus corpo esguio e longos dreads, Edi Rock com seu cabelo estiloso e suas letras ácidas e Mano Brown com seu corpo e mente malhados, com uma tatuagem no braço que me pareceu o mapa da África. Um intelectual da quebrada que tem teses e dissertações escritas sobre sua trajetória. Tudo isso, sem falar no palhaço que sempre acompanha o grupo, que com sua máscara e seus passos de break revestiu o show de uma áurea de realismo mágico. Nem o som ruim tirou a magia do espetáculo. Das coisas mais legais que eu vivo na criação desse menino são esses momentos de descoberta e fruição que a gente vive junto, onde esquecemos todos os perrrengues pelos quais já passamos e conseguimos até fazer piada das nossas pequenas tragédias. Quando chegamos em casa, eu confessei a ele o baita orgulho que eu sinto, poder dividir com ele momentos tão emocionantes como o de ontem. Eu fico imaginando a bomba que foi na década de 1990 quando Racionais estourou na quebrada, numa época sem redes sociais, sem auxílio dos meios de comunicação hegemônicos, dos quais o grupo tem imensa antipatia. Onde a circulação das músicas acontecia em fitas cassetes, levando meses de um bairro a outro. Os quatro pretos mais perigosos do Brasil, porque, como diz a letra, entram pelo rádio e tomam os filhos, até mesmo dos playboys. "Seu filho quer ser preto, ah, que ironia"... O show foi na verdade uma grande celebração, um grande ritual de um povo que vive à margem, mas que dependendo de como se olha, são centro. Ontem, experenciando no meu corpo aquela eferverscência coletiva eu fiquei pensando que chegará o dia que o povo preto vai se convencer do valor e da força que ele tem e vai descer o morro e não será num dia de carnaval. E eu peço às deusas que eu esteja viva, ainda que velhinha, para poder participar desse momento, porque como diz a letra, "o bagulho é doido e o processo é lento", mas ele já começou. E depois que entramos na canoinha e iniciamos a travessia para a terceira margem, não tem mais volta. Nenhum golpe consegue barrar esse processo. Nenhum! O hip hop é foda!

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