quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

"Janela de ônibus"...

I
Cansada desse vai e vem, eu fazia um esforço mental para não me aborrecer. Me acomodei na poltrona dura, tentando achar uma posição confortável, em vão. Escolhi o lado esquerdo do ônibus para pegar o sol nascendo. O menino avisou: "mãe, vou colocar os fones", o que significa, 'tô desligando do mundo'. Confirmei se os documentos estavam na bolsa. Apesar do aviso, cutuquei o menino e mostrei a fotografia da primeira carteira de trabalho. "Quantos anos você tinha, mãe?" "14, a sua idade, hoje." "Já usava black, hein mãe?" "Mais ou menos, a intenção não era bem essa, mas os poucos recursos da época..." Ele ri. "Você já trabalhou muito, heim? Duas carteiras..." Ele olha o primeiro emprego: servente - Instituto Alcinda Fernandes. "Fui tão humilhada, aí. Faliram!" "Bem feito!" Ele diz. Ele olha o emprego seguinte: Irmãos Nasser Ltda - Auxiliar de Serviços Gerais. Admissão: 3 de setembro de 1985. "Quantos anos você tinha aqui, mãe?" "19" "E o que você fazia?" "Limpava a loja, lavava banheiro, repunha mercadorias nas prateleiras. Trabalhava na seção de brinquedos. Foi quando decidi voltar a estudar." "Auxiliar de separação de pedras?" "Era uma indústria de jóias. Separava pedras preciosas: brilhantes, rubis, esmeraldas." "Nossa!" Depois, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista, telefonista/recepcionista, telefonista/recepcionista, telefonista/recepcionista. "Melhorou um pouquinho né, mãe?" "Sim! Já tinha ensino médio completo." "E aqui? Analista de pesquisa e planejamento." "Aí, já tinha curso superior." "Bacana demais, mãe!". Professora auxiliar, professora assistente I, professora assistente I, professora, professora. São os registros da segunda carteira de trabalho. "Cê tá há muito tempo no corre, né mãe?" "Há 36 anos, meu filho! E ainda vou ter que trabalhar mais 15 para me aposentar." "Cê é loco!". Ele devolve as carteiras, eu guardo na bolsa e ele recoloca os fones. "Agora tô desligando do mundo, viu mãe?" Também coloco os meus fones. Celso Adolfo canta:


"A vida ferve na cuia do tempo,
quem espera a dor não viaja no vento
Ranquei a hora do chão do momento,

Nasci de manhã e o sol veio olhar
Brilhou meu setembro, fiquei no lugar,
mais cedo que a vida, fui trabalhar "...

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