Diante da ameaça de desaparecimento do povoado sob as águas de uma barragem que será construída para abastecer uma usina hidroelétrica, os moradores do Vale do Javé se reúnem para a busca de uma solução. Descobrem, então, que existe uma possibilidade de salvação: o tombamento do local como patrimônio histórico. Mas para isso, a cidade tem que ter uma “coisa grande”, uma “história importante”. Esse é o enredo que conduz a narrativa do filme de Eliane Caffé.
No entanto, os moradores se vêm diante de um impasse: de quem será a “mão santa” que colocará as letras no papel? Desencavar da cabeça os “grandes acontecimentos”, as “histórias das origens , a “história grande”, não é problema. Cada um dos moradores tem a sua versão do mito fundador do lugar. Eles têm a palavra cantada, contada e recontada, muito ouvida, mas nunca escrita. Mas quem seria capaz de colocar no papel, de “ajuntar as histórias espalhadas” e transformá-la em “dossiê científico”? Antônio Biá é a resposta. Antigo funcionário do posto de correio, ele é expulso da cidade quando os moradores descobrem que para manter o seu emprego e impedir que o posto feche, por não ser utilizado, Biá começa a escrever histórias sobre as pessoas do vilarejo e enviar para todos conhecidos, aumentando assim, o seu serviço . Os moradores, então, concedem o perdão, se em troca, Biá assumir o lugar de “escrivão” da “grande odisséia” do Vale. Aceito o desafio, ele sai então, em busca das “lembranças javéicas”, dos “grandes feitos”, pois, “histórias grandes”, “de valor”, é que não faltam, ali.
Mas o que Narradores de Javé tem a ver com a Pedagogia do Oprimido? O Vale é um lugar de analfabetos, e segundo Paulo Freire (1968), alfabetizar é conceder ao outro o direito a palavra. Esse é o papel que Antônio Biá desempenha na história. Ele ajuda as pessoas a “biografar-se”, a “existenciar-se”, “a historicizar-se”, pois na pedagogia freireana, alfabetizar-se é aprender a escrever a sua vida, como autor e testemunha de sua história. E é isso que Biá proporciona aos moradores do lugar, na medida que busca palavras para dizer e escrever a história do povoado.
Como na pedagogia do oprimido, as palavras em Narradores de Javé, têm uma força pragmática que instaura e transforma o mundo humano. Os moradores ao ganharem distância para ver a própria experiência, analisam e reconstituem uma situação vivida. Ao objetivar seu mundo, reencontram-se uns com os outros no mesmo mundo comum e, juntos recriam criticamente o seu mundo. Ali, a palavra transforma-se no lugar do encontro, de cada um consigo mesmo e com os outros. É a dialogicidade como prática de liberdade. Isso porque, como nos diz Paulo Freire, a língua é cultura, onde a partir de suas palavras, o homem constrói o seu mundo. “O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste redescobrindo o processo que o faz e refaz” (FREIRE, 2005, p.11). E é isso que faz cada morador.
No mito fundacional de Javé, existe a figura daquele que guia seu povo para a terra prometida, Indalécio. A cada história narrada, o narrador busca o herói para si. Mas não é essa a função da narrativa? Nutrir-se da memória para narrar o que aconteceu em torno de uma determinada experiência? Sua lógica vai sendo tecida no modo como o (a) narrador(a) transita entre os eventos e imagens mais significativos (Teixeira et al 2006). E assim, a cada narrativa, cada morador se torna protagonista da sua história, re-existenciando criticamente as palavras de seu mundo e dizendo a sua palavra.
A possibilidade de desaparecimento do lugar leva os moradores a se re-descobrirem através da retomada reflexiva de um processo onde vão manifestando-se e configurando-se enquanto autores de uma história. Segundo Freire, esse seria o objetivo da alfabetização, mais do que aprender a ler as palavras, é preciso aprender a dizer a sua palavra.
Referências Bibliográficas
CAFFÉ, Eliane. Narradores de Javé. Bananeira Filmes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 41 ed, 2005.
TEIXEIRA, Inês Assunção de C., PRAXEDES, Vanda L., PÁDUA, Karla C. et al. Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
lindo!...e para ti...
ResponderExcluir"aetas:Carpe Diem quam minimum credula postero."
Valeu!!!
ResponderExcluirUm abraço,
Sonhosa
Virou tema da minha aula, numa sexa-feira chuvosa...
ResponderExcluirLidi.
Adorei... não consegui enxergar de outra forma... Acabei pegando parte de suas ideias para um trabalho da facul...Muito obrigado!
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