sexta-feira, 8 de maio de 2009

O poder da palavra: Narradores de Javé à luz de Pedagogia do Oprimido

Diante da ameaça de desaparecimento do povoado sob as águas de uma barragem que será construída para abastecer uma usina hidroelétrica, os moradores do Vale do Javé se reúnem para a busca de uma solução. Descobrem, então, que existe uma possibilidade de salvação: o tombamento do local como patrimônio histórico. Mas para isso, a cidade tem que ter uma “coisa grande”, uma “história importante”. Esse é o enredo que conduz a narrativa do filme de Eliane Caffé.

No entanto, os moradores se vêm diante de um impasse: de quem será a “mão santa” que colocará as letras no papel? Desencavar da cabeça os “grandes acontecimentos”, as “histórias das origens , a “história grande”, não é problema. Cada um dos moradores tem a sua versão do mito fundador do lugar. Eles têm a palavra cantada, contada e recontada, muito ouvida, mas nunca escrita. Mas quem seria capaz de colocar no papel, de “ajuntar as histórias espalhadas” e transformá-la em “dossiê científico”? Antônio Biá é a resposta. Antigo funcionário do posto de correio, ele é expulso da cidade quando os moradores descobrem que para manter o seu emprego e impedir que o posto feche, por não ser utilizado, Biá começa a escrever histórias sobre as pessoas do vilarejo e enviar para todos conhecidos, aumentando assim, o seu serviço . Os moradores, então, concedem o perdão, se em troca, Biá assumir o lugar de “escrivão” da “grande odisséia” do Vale. Aceito o desafio, ele sai então, em busca das “lembranças javéicas”, dos “grandes feitos”, pois, “histórias grandes”, “de valor”, é que não faltam, ali.

Mas o que Narradores de Javé tem a ver com a Pedagogia do Oprimido? O Vale é um lugar de analfabetos, e segundo Paulo Freire (1968), alfabetizar é conceder ao outro o direito a palavra. Esse é o papel que Antônio Biá desempenha na história. Ele ajuda as pessoas a “biografar-se”, a “existenciar-se”, “a historicizar-se”, pois na pedagogia freireana, alfabetizar-se é aprender a escrever a sua vida, como autor e testemunha de sua história. E é isso que Biá proporciona aos moradores do lugar, na medida que busca palavras para dizer e escrever a história do povoado.

Como na pedagogia do oprimido, as palavras em Narradores de Javé, têm uma força pragmática que instaura e transforma o mundo humano. Os moradores ao ganharem distância para ver a própria experiência, analisam e reconstituem uma situação vivida. Ao objetivar seu mundo, reencontram-se uns com os outros no mesmo mundo comum e, juntos recriam criticamente o seu mundo. Ali, a palavra transforma-se no lugar do encontro, de cada um consigo mesmo e com os outros. É a dialogicidade como prática de liberdade. Isso porque, como nos diz Paulo Freire, a língua é cultura, onde a partir de suas palavras, o homem constrói o seu mundo. “O que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é expressão objetiva de seu espírito. Por isto, pode o espírito refazer o feito, neste redescobrindo o processo que o faz e refaz” (FREIRE, 2005, p.11). E é isso que faz cada morador.

No mito fundacional de Javé, existe a figura daquele que guia seu povo para a terra prometida, Indalécio. A cada história narrada, o narrador busca o herói para si. Mas não é essa a função da narrativa? Nutrir-se da memória para narrar o que aconteceu em torno de uma determinada experiência? Sua lógica vai sendo tecida no modo como o (a) narrador(a) transita entre os eventos e imagens mais significativos (Teixeira et al 2006). E assim, a cada narrativa, cada morador se torna protagonista da sua história, re-existenciando criticamente as palavras de seu mundo e dizendo a sua palavra.

A possibilidade de desaparecimento do lugar leva os moradores a se re-descobrirem através da retomada reflexiva de um processo onde vão manifestando-se e configurando-se enquanto autores de uma história. Segundo Freire, esse seria o objetivo da alfabetização, mais do que aprender a ler as palavras, é preciso aprender a dizer a sua palavra.


Referências Bibliográficas

CAFFÉ, Eliane. Narradores de Javé. Bananeira Filmes, 2003.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 41 ed, 2005.
TEIXEIRA, Inês Assunção de C., PRAXEDES, Vanda L., PÁDUA, Karla C. et al. Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

4 comentários:

  1. lindo!...e para ti...

    "aetas:Carpe Diem quam minimum credula postero."

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  2. Valeu!!!
    Um abraço,
    Sonhosa

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  3. Virou tema da minha aula, numa sexa-feira chuvosa...

    Lidi.

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  4. Adorei... não consegui enxergar de outra forma... Acabei pegando parte de suas ideias para um trabalho da facul...Muito obrigado!

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