domingo, 4 de março de 2018

Mais um dia de reis

6 de janeiro de 2018. Mais um dia de Reis. Saímos de Baldim por volta das 17h. Escolhemos o caminho da Peroba. Zezé, precavido, separou um saco para os pequis que seriam recolhidos pelo caminho. Levamos muito mais tempo que o previsto, porque a cada pé de pequi, ele parava para recolher. A primeira surpresa do caminho foi uma raposa. Que bicho lindo! Foi a primeira vez que vi uma. Ela é pequenina, imaginei muito maior. Tentei fotografar, mas esperta, ela se embrenhou pelo cerrado. Depois, com o chove-não-chove, fomos brindados com um arco-íris. Lamentamos a ausência da Luia e do Roberto. É que a beleza sozinha é triste, ela pesa. E queríamos dividir com mais gente. Há anos, Zezé vai me apresentando os lugares e repetindo as histórias: aqui, eu trazia marmita para o papai; ali, ele plantou um quiabeiro; ali é a Tiririca onde Enir nasceu; esse corguinho aqui, nunca secou; ali é a Lapa, onde morava Dindinha Ana; aqui, passamos a noite, eu e Neném, depois de perdermos o caminhão de miçangas para Baldim, tivemos que ir à pé, no dia seguinte; ali, foi onde comi picão, época que passamos muita fome. Ele se emociona, os olhos enchem de lágrimas. Todo ano é a mesma coisa. Eu vou cobiçando e fotografando as casinhas. Olhe, Zé, uma dessas me atende, adoro janelas de madeira. Se eu morrer sem ter uma casa, vou morrer muito frustrada. Poderíamos comprar aquela ali. 40 mil. Vamos juntar dinheiro? A gente compra em sociedade. E sonhamos juntos. Da estrada enlameada ele vê o primo Dico na lida com as abóboras. Eu paro para fotografar a plantação de couve-flor que está uma beleza. Nos entretemos com a conversa. As chuvas fizeram perder muitas abóboras, que embora próprias para o consumo, não são compradas no mercado por causa de pequenos defeitos. Eu sofro com o desperdício. Não tem como doar para escolas, asilo? Não tenho como levá-las daqui. O primo convida para um café. Vamos até sua casa. Recém-separado está choroso. Eu e Zezé, experientes, ambos com dois descasamentos nas costas, damos um curso intensivo para ele. Olha, a gente não morre disso não, viu? Na maioria das vezes saímos melhor, mais fortalecidos. Separação é um processo longo de convencimento. Você precisa viver o seu luto. Tenha paciência, vai passar. A conversa-divã se prolonga. O café está bom. Um requeijão, desses de cortar em pedaços, sai da geladeira. Demoramos mais do que o previsto. Já é noite quando saímos de lá. Cuidado com a carência. Não vá se envolver com alguém nesse momento que você está fragilizado. Quando se está afogando, jacaré vira toco, viu? Já abraçamos cada crocodilo né, Zé? Rimos os três. O primo parece mais animado. Não sumam, não. Voltem depois. Qualquer hora eu apareço em Baldim. Quando finalmente chegamos no arraial, os foliões já estão no backstage da festa vestindo as fardas e afinando os instrumentos. Um dos primeiros a encontrarmos é Tio João, um dos fundadores da folia. 82 anos de lucidez, causos, piadas e uma risada parecidíssima com a de papai. Perdeu a bengala no caminho. Se apoia num pau de lenha que achou por aí. Ele ri. Isso a família de papai tem de sobra: bom humor. Vamos atrás de tia Mariinha, 95 anos. É a referência de todos da família. Queremos envelhecer como ela, vergada de motivos. Pergunta por todo mundo: e a Cleuza? Ainda está morando naquele lugar? E a Tina, o Nilson, a Luia? Enir, cadê? Seu menino não veio, por quê?Sabe a idade de todos. Lembra de datas. Falou emocionada no aniversário de morte do papai, 30 anos em 15 de novembro. Visitei ele uma semana antes. Falei de Deus pra ele. Ele ouviu quietinho. Tenho certeza que Deus o recebeu em glória. Morreu jovem, 62 anos. Já estou no lucro com 65, Zezé comenta. Falamos da doença de Chagas que o matou. Doença de pobre. Claro, rico mora em casa de pau-a-pique? Rico sempre morou em casa de alvenaria. Lembro de Carolina Maria de Jesus. Zezinho e Dulce, às vezes, Durça, é uma espécie de senha. Todo mundo conhece. Você é filha do Zezinho e da Dulce? Divera? Ô, diá! E viramos amigos de infância. Tia Mariinha conta, ajudei minha mãe a criar e enterrar meus irmãos e sigo firme, em pé. Procuro um lugarzinho dentro da capela para sentar com ela e vermos a adoração do presépio. Apesar de evangélica, ela respeita e se comove com a devoção do irmão. Depois do sagrado, vamos todos para o salão para a hora mais esperada, o lundu. O povo se diverte, as crianças participam. Terminada a dança e cantoria uma fila se forma. É hora do banquete coletivo. Feijão tropeiro, arroz, macarrão, frango ensopado. Sem área vip, Tio João entra na fila para dar o exemplo. Mas não precisa, tio; o Senhora é da diretoria, brinco. Ele faz questão. Antes, busca um prato de comida para a esposa. Alguém traz para tia Mariinha que está sempre cercada de gente de todas as idades, todos impressionados com sua vitalidade. A fila também é um acontecimento. Alguém passa oferecendo uma pinguinha para abrir o apetite. Conhecidos se encontram. Você é filho de quem? Ah, conheço o seu avô. Histórias são contadas. Ele perdeu um filho. Nossa, que tristeza! Avisa fulana para separar os doces que amanhã eu passo lá. E estou com muita gente, viu? 4 carros e uma van. Depois de comermos, saímos à francesa. Já são mais de 11 horas da noite.
Até para o ano, se deus quiser.

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