terça-feira, 6 de setembro de 2016

Aquarius

"Eu quero entender os 11 minutos de palmas ininterruptas em Cannes, Dalva!", foi o que disse a minha irmã.  Cinéfila como é, nunca tinha visto uma aclamação como aquela que o filme recebeu no Festival. Aquarius começa com o aniversário de uma tia de Clara, uma septuagenária. Neste prólogo, Kleber Mendonça já dá pistas que é sobre empoderamento da mulher que ele vai falar.

Mas, Aquarius é também um filme sobre memória. O belíssimo apartamento de Clara, todos os seus objetos, sua coleção de discos em vinil, o móvel que foi da tia, me lembraram o poema de Bertold Brecht:

De todos os objetos, os que mais amo são os usados.
As vasilhas de cobre com as bordas amassadas,
os garfos e as facas cujos cabos de madeira
foram colhidos por muitas mãos.
Estas são as formas que me parecem mais nobres.
Estes ladrilhos das velhas casas
gastos por terem sido pisados tantas vezes,
estes ladrilhos onde cresce a grama
me parecem objetos felizes.
Impregnado do uso de muitos,
a miúde transformados, foram aperfeiçoando suas formas
e se fizeram preciosos porque tem sido apreciados muitas vezes.
Agradam-me, incluso, os fragmentos de esculturas com os braços cortados.
Viveram também por mim.
Caíram porque foram trasladados.
Derrubaram-nas, talvez, porque estavam muito altas.
As construções quase em ruína parecem todavia projetos sem acabar,
grandiosos; suas belas medidas podem já imaginar-se,
mas ainda necessitam de nossa compreensão.
E além do mais já serviram, inclusive já foram superadas.
Todas estas coisas me fazem feliz.

A casa carrega sua história. As marcas são importantes. Como nos ensina Brecht, é o que confere nobreza aos objetos. Os ladrilhos gastos, a louça descascada, a madeira surrada. São objetos felizes, foram colhidos por muitas mãos, foram pisados muitas vezes, transportados pra lá e pra cá. Como o álbum de John Lennon comprado por Clara, em um sebo, em Porto Alegre. Clara carrega toda essa memória em si.

E Clara é esfuziante, com todas as suas rugas e cicatrizes. Ela não é uma jovenzinha descobrindo o mundo, não! É uma sexagenária! Linda! Que carrega consigo a dor e a delícia de ser quem é. É uma mulher bem resolvida. Que vive sua sexualidade, que sai com as amigas para beber e dançar e que paga para ter sexo se esse for o seu desejo. Clara não chora, nem a viuvez. Na cena em que vai ao cemitério visitar o túmulo do marido, ela desiste de ler o que escreveu pra ele, deposita as rosas no túmulo e vai embora, decidida. Passou, viveu! Clara não sente culpa, de nada. Nem quando a filha, durante um almoço de família, lhe joga na cara os dois anos que ela ficou longe para escrever seu livro. A figura de Clara por si só, impõe respeito. "Quem é você na fila do pão, minha filha?" Ela parece dizer. "Há quanto tempo você está no mundo"? "Me respeite, viu? Porque foi nesse seio que nem existe mais que você mamou." Clara é segura, é corajora, é independente. Clara é pura resistência. Viva Clara!

Em "O som ao redor" virei fã de Kleber Mendonça. Quando ele tirou do bolso interno do seu paletó,  um cartazinho anti-golpe, feito em folha A4 e o ergueu em pleno tapete vermelho, em Cannes, eu caí de amores. No domingo, quando saí da sala 1 do Cine Belas Artes em BH, meu desejo era casar com ele. Sim, eu sei que Kleber é casado com a francesa, mas o divórico já existe no Brasil.

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