domingo, 24 de abril de 2016

Pós-aniversário

Ontem foi um dia bom. Meu irmão caçula apareceu com a esposa, filha e filhos. Minha irmã Tina e seu filho Léo também vieram. Fiz um bolinho de fubá, um pão caseiro, café e cantamos os parabéns para o menino. Ele tímido, segurava a vela acesa na mão. Peguei emprestado das velas dos santos. Sou uma agnóstica que acendo vela para as almas santas, às segundas-feiras. Aprendi acompanhando a capitã Pedrina durante o meu trabalho de campo para a tese de doutorado. Segunda-feira era dia de tratar das almas, dos tambores de candombe, dos santos, dos nkisis. Fiz e servi, muitas vezes, café para São Benedito, um dos meus santos preferidos porque é pretinho. Enfim, voltemos ao dia de ontem. Depois do café, vivemos horinhas de descuido sentados à mesa, na varanda. Enquanto as crianças, numa algazarra só, corriam pelo quintal e pela casa, a gente refletia sobre o momento político. Meu irmão mais velho é aposentado, mas continua trabalhando com seu caminhão velho, transportando areia, terra e pedras para construção e com sua pickupzinha velha, fazendo pequenos carretos. Ele está preocupado com o futuro. Como é dos mais velhos, passou pelos momentos mais difíceis, quando a família vivia abaixo da linha da pobreza. Hoje, vive com muita dignidade, apesar de ter pouquíssimas coisas materiais. Minha irmã Tina e meu irmão Nilson são os mais novos, foram ainda pequenos para BH, quando mamãe decidiu buscar uma vida melhor na capital. Passaram muitos perrengues. Tina, apesar de, na época, ser ainda uma criança, trabalhou de doméstica e babá. O caçula começou a trabalhar aos 15 anos de idade, numa loja de autopeças como estoquista. Depois virou bancário e hoje é funcionário federal.Também está preocupado, pois a oposição já falou em privatização. Ficamos lembrando dos tempos de UFMG e de como escolhemos nossos cursos numa época que não tinha cotas, Reuni, nem Prouni. Tinha que ser na universidade federal, porque não tínhamos dinheiro para pagar um faculdade particular. Mas tinha que ser um curso que não fosse muito concorrido e que possibilitasse, logo, o ingresso no mercado de trabalho. O que escolhemos? Licenciaturas, porque professor ganha pouco, mas não fica desempregado. Somos uma família de professorxs. Nilson fez educação física.Tina fez geografia e eu, ciências sociais. Nós duas fizemos não só a licenciatura, como o bacharelado para ampliar as possibilidades de trabalho. Tina é professora da rede pública municipal de BH, há mais de 20 anos. Ficamos lembrando da mamãe e pensando se na época dela tivesse bolsa família a diferença que teria feito em nossas vidas. Mamãe, empreendedora do jeito que era, seria uma daquelas milhares de mulheres que já devolveram o cartão do benefício porque melhoraram a renda. Nilson falava das possibilidades de escolher outros cursos, se na nossa época, tivesse as políticas públicas de educação que têm hoje. Ficamos pensando na geração que não viveu as décadas de 1980 e 1990 e não sabem o que é desemprego a uma taxa de quase 20%, inflação a 100% ao mês e desabastecimento nos supermercados. Discutimos o por quê de uma geração que viveu isso tudo e ainda assim, odeia Lula, Dilma e o PT. Não falo da frustração pelos erros cometidos, mas de ódio mesmo, ódio de classe. São pessoas do nosso círculo familiar e de amizade que ascenderam socialmente e que hoje, querem apagar as marcas de onde vieram. Eu, não! Eu tenho muito orgulho da minha história. Sempre tive! Meu pai, um lavrador, como ele orgulhosamente se definia, morreu sonhando com a reforma agrária. Baixinho e espirituoso, Seo Zezinho trazia no corpo as marcas de uma vida forjada no cabo da enxada, aparentava muito mais idade do que realmente tinha, por trabalhar durante décadas embaixo do sol. Minha mãe, embora analfabeta, lia o mundo como ninguém. Era muito mais crítica do que muitos que tiveram acesso a educação formal. Por isso, pra mim, a quebrada não é só um lugar geográfico, é existencial. É como o sertão de Guimarães Rosa, está dentro de mim. São seus personagens que me comovem. Arrepio dos pés à cabeça quando vejo os trabalhadores rurais sem terra com seus instrumentos de trabalho levantados, passando por uma porteira de alguma fazenda grilada e improdutiva. Choro de lágrimas quando vejo mulheres e crianças vivendo em situações precárias em ocupações de imóveis abandonados há anos, muitas vezes imóveis públicos que são verdadeiros ultrajes à função social da propriedade. É desse lugar que falo: mulher, negra e periférica. Por isso me emociono quando, junto com o menino, escuto as crônicas dos Racionais MC´s, ou as letras ácidas de Criolo e Emicida. A quebrada é minha terceira margem, minha canoinha, estou sempre atravessando, numa travessia que não se efetiva, que não tem fim. E sigo, como o velho do conto de Guimarães Rosa, "rio abaixo, rio a fora, rio a dentro", porque a terceira margem não se alcança nunca, mas é ela que nos move a remar.

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