segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Era raiva não...

mamãe era muito parecida com a mãe do conto "sem enfeite nenhum", de adélia prado. fazia esforço pra sair a rua. é que ela não sabia fingir e não era todo mundo que queria encontrar, então preferia ficar no seu cantinho. no máximo, chegava na porta de casa, ia a missa. muitas vezes, quando eu estava junto com ela, atravessamos a rua em passos apressados para não encontrar com algum chato que estava do outro lado. mamãe era assim, nervosa, sem paciência. foi amaciando à medida que os filhos foram crescendo, as responsabilidades e os problemas diminuindo. mamãe vivia com pouco, não gostava de ostentação. dois ou três vestidinhos estampados, sempre do mesmo feitio, sem mangas e com golas. dindinha maria era quem costurava. reciclava tudo. o vestido velho, já puído, ganhava um elástico e virava anágua, depois a anágua virava pano de tirar poeira, até não restar mais nada. mania de quem viveu por muito tempo abaixo da linha da pobreza. mamãe não abria mão era da tinta para o cabelo. a pela enrugada, a boca ficando murcha, mas o cabelo pretinho. era a vaidade dela. nunca colocou uma calça comprida. os vestidinhos eram sua marca registrada. os vestidinhos e o sapato moleca. apesar de não ler as letras, lia o mundo, e inteligente que só, abstraia: "aquele ali tem espírito de águia", me disse certa vez, se referindo a um vizinho, rapaz jovem, mas muito empreendedor. falou assim se referindo ao livro "a águia e a galinha", de rubens alves, que um dia li pra ela. eu gostava de ler pra ela. choramos juntas quando li o começo de "só as mães são felizes" da lucinha araújo e da regina echevarria. o livro começa justamente com os momentos finais do cazuza. ela também chorou quando li "poema esquisito" de adélia prado. não conheceu o pai, teve uma história difícil com a mãe e quando eu li os versos finais: "ôôôô pai, ôôôô mãe, dentro de mim eles respondem tenazes e duros, porque o zelo do espírito é sem meiguices, ôôôôi fia." ela não aguentou e caiu no choro. Acho que ela nunca ouviu um "ôôôôi fia", pois se casou ainda adolescente, aos 16 anos. talvez, por isso o choro. nem teve tempo de ser filha. virou logo esposa e mãe. pouco antes dela morrer, quando a visitei no hospital, ela nem abriu os olhos e só falou com sua voz grave: "é, acho que desta vez eu não aprumo mais não." e não aprumou. mamãe era muito brava. como a mãe do conto a "terceira margem do rio" de guimarães rosa, ela era "quem regia, e que ralhava no diário com a gente". ela era assim, "sem enfeite nenhum". nunca passou um batom, não usava brinco, mas adorava suas roupas perfumadas. todos os sabonetes que ganhava iam para as gavetas da cômoda, além dos saquinhos com folhas secas do patchouli que ela tinha na horta. até outro dia eu guardava o que ela fez pra mim, mas sumiu no meio de tantas mudanças. o tempo foi abrandando mamãe, ela foi ficando mais tolerante, administrando melhor os conflitos, mais paciente com as diferenças dos filhos. quando ela morreu, seu rosto sereno me convenceu, que assim como a mãe de "sem enfeite nenhum", o que ela tinha, "era raiva não". era marca de dor".

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