domingo, 7 de maio de 2017

"O dia que o morro descer e não for carnaval"

Quando eu tinha cerca de 18 anos, li um livro que me impactou profundamente: "Exílio na Ilha Grande", do André Torres. Este livro foi uma lente importante para eu enxergar as mazelas sociais. O livro me impactou tanto, que lembro até hoje de uma das frases lida logo nas primeiras páginas: "Como não ser violento quando temos toda uma agressão social que nos mata por dentro? O ser humano cria defesa e essa é uma delas". Era mais ou menos assim. André era assaltante de banco, branco e de "boa aparência". Dizia que pegava de volta o que havia lhe roubado. Roubava boutiques e carros de luxo e como era branco, nunca era considerado suspeito. Ele fala disso no livro. Foi preso e fugiu várias vezes e como tinha uma consciência política muito grande, era tratado como preso político. Lembro que em uma das fugas da Ilha Grande, ele narra a preocupação em carregar a escova de dentes. Ele tinha um cuidado muito grande com a aparência física, pois sabia o quanto a sociedade valoriza isso. Foi esse livro que me despertou para as Ciências Sociais, juntamente com "Tortura Nunca Mais" de Dom Helder Câmara, "Cavaleiro da Esperança" sobre Luís Carlos Prestes, de Jorge Amado, "Rosa, a Vermelha", sobre Rosa de Luxemburgo, "Corredor Polonês" sobre os países do leste europeu. Ainda tenho alguns desses livros comigo, edições de capa dura do antigo "Círculo do Livro", um clube de leitores onde você se associava e era obrigada a comprar. Eu sempre adorei essa obrigação. Isso foi bem antes da Universidade, onde entrei tardiamente. Mas esses livros foram fundamentais na minha formação política. Ainda tenho "O que é o capitalismo", "O que é o socialismo", "O que é o comunismo", "O que é o corpo", da coleção Primeiros Passos. Li, ainda no ensino médio. Tinha fome de saber. São questões que me perseguem há muito tempo e que esses tempos brutos têm trazido à tona essas lembranças. Na sexta-feira durante a manifestação, eu pensava em como somos ingênuos. Vamos para um possível confronto, que sempre pode acontecer, sem nenhuma preocupação de nos protegermos. Na sexta-feira, enquanto ouvia as as pessoas discursarem no carro de som, lembrei do clip do Racionais MC's sobre o Marighella. A música foi encomendada para o documentário de mesmo nome, lançado, acho, que em 2013. No Clip, os 4 pretos mais perigosos do Brasil reproduzem a ocupação que Mariguella fez na Rádio Nacional, em 1967. Ele ocupou a rádio e leu seu manifesto, duas vezes. Ontem, assisti o programa "Provocações" do Abujamra [que falta ele faz] onde ele entrevista a guerrilheira Clara Charf, que foi casada com Mariguella. Que mulher, minha gente! Que mulher! Depois de ouvi-la fui ler o "Mini-manual do guerrilheiro urbano" escrito pelo Mariguella onde ele fala da necessidade de preparação física, de conhecer bem seu inimigo, de construir estratégia. Ontem, enquanto via o vídeo da polícia militar atirando bombas no RJ, enquanto manifestantes gritavam para a PM parar, cheguei a ficar constrangida com tamanha ingenuidade. A esquerda-branca-classe média precisa subir o morro e ver como que é na quebrada. Quem pede para a PM parar nunca foi enquadrado, nunca tentou argumentar com um PM durante uma abordagem. Precisamos nos convencer que estamos em guerra. Precisamos ler sobre o Quilombo dos Palmares, sobre os Malês, aprender com Zumbi, com Luísa Mahin. A PM não é mal preparada, ela é preparada exatamente para fazer o que faz: proteger o capital. Precisamos sentar com os irmãos e irmãs do MTST e MST e aprender sobre ocupação e resistência. Como diz o poeta Pedro Pomba, "aqui, toda camisa branca é manchada de vermelho sangue e paz é uma palavra que não existe no vocabulário da rua". Por isso, eu sonho com o dia que as bombas que temos guardadas dentro de nós, explodam. Eu partilho com o mestre Wilson das Neves o sonho do dia em que o morro descer e não for carnaval:
"Não vai nem dar tempo de ter o ensaio geral, e cada uma ala da escola será uma quadrilha, a evolução já vai ser de guerrilha, e a alegoria um tremendo arsenal, o tema do enredo vai ser a cidade partida, no dia em que o couro comer na avenida, se o morro descer e não for carnaval. O povo virá de cortiço, alagado e favela mostrando a miséria sobre a passarela, sem a fantasia que sai no jornal, vai ser uma única escola, uma só bateria quem vai ser jurado? Ninguém gostaria, que desfile assim não vai ter nada igual. Não tem órgão oficial, nem governo, nem Liga nem autoridade que compre essa briga, ninguém sabe a força desse pessoal, melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria, senão todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e não for carnaval"

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