terça-feira, 16 de maio de 2017

Deus-dará

A leitura estava tão empolgante, que mesmo em pé, no ônibus do Move, me equilibrei segurando o livro de quase 600 páginas da Alexandra Lucas Coelho. "Deus-Dará" é uma aula de história do Brasil a cada página. Coincidentemente, ou melhor, confluentemente, como diria Mestre Nego Bispo, enquanto lia sobre o momento que o personagem Lucas distribuía comida aos usuários de crack na cracolândia carioca, o ônibus passava em frente a favela no bairro São Francisco. Quando me mudei para BH, em meados da décadas de 1980, essa favela não existia. Passando de ônibus, vi ela nascer e crescer ao longo dos anos. Os usuários que antes ficavam restritos a região do conjunto IAPI, hoje estão ao longo de toda a avenida Antônio Carlos; da região do viaduto São Francisco, à Lagoinha. O número cresceu exponencialmente nos últimos anos. Gosto da Alexandra porque ela nomeia todos os seus personagens: "Uma garota corcunda de tão magra, vestígios de verde fosforescente nas unhas, quase sufoca com o bolo: o nome dela é Zulmira. Um homem que parece sugado vomita o que acaba de comer: o nome dele é Laurinho. Há quem traga garrafas para encher de suco: Paco, Gerson." Me lembrou Gabina e sua tese sobre as usuárias do Pelourinho, em Salvador: Lucy, Gal... As usuárias tinham nome, histórias, desejos. Alexandra cita os pixos no centro do Rio: "Copa pra quem?" "[Porto] Maravilha pra quem"?. Olho pela janela do ônibus e vejo os pixos na avenida Antônio Carlos: "Sistema cão", "Morte ao sistema". Confluências das metrópoles e suas mazelas. Próximo ao hospital Belo Horizonte alguns barracos vão sendo erguidos. No começo da semana era apenas um, hoje já são três. Em "Deus-dará", Tristão e Inês sobem o Morro da Conceição e lá de cima apreciam a Baía da Guanabara: "Está cheia de lixo, esgoto, cadáveres. Mas à distância é uma beleza..." No livro, a portuguesa questiona Tristão: "A abolição foi quando?" "Só em 1888". Então a todo momento cruzamos com bisnetos de escravos." "Pensei que seria mais misturado" (...) Mas ao mesmo tempo há algo de feudal, as babás, os porteiros, tantos empregados. Não imaginei que daria para ver tanto a herança colonial." Dá sim, Inês! No centro de BH também me assusto com a quantidade de vendedores ambulantes. Contei 30 na calçada de meio quarteirão. Nas ruas São Paulo, Curitiba, Guarani, está dificílimo andar. É visível o empobrecimento da população.
Lembrei da capitã Pedrina e seu canto do 13 de maio:
"Cem anos de abolição
Não pude comemorar
Cadê a libertação
Que a Lei Áurea ficou de me dar?"
E pensar que ainda vai pior muito.

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