sábado, 6 de agosto de 2016

Tem alguma coisa muito errada

Ao contrário de mim, que sempre confesso tudo, me expondo em demasia, o menino é reservado. Ouve muito mais do que fala. Pequenininho já me proibia: "mãe, eu não quero que você fale da minha vida pessoal com seus alunos". Eu ria: "você lá sabe o que é vida pessoal?" E ele me olhava atravessado, a cada vez que encontrávamos com algum alunx na rua, que sempre dizia: "este que é o famoso João Pedro?" Denunciando que já tinha ouvido muita história a respeito do menino. Ele só levantava a cabecinha em minha direção, como a dizer: "Mãe, você não tem jeito, hein?" E eu sempre contando alguma coisa sobre ele, alguma fala surpreendente para a pouca idade. Por volta dos 9 anos, sentado na bancada, na kitinet onde morávamos, em Florianópolis, sem parar a tarefa da escola que estava fazendo, ele disse: "mãe, hoje um gurizinho me chamou de negro na escola." Rapidamente formou um bolo no meu estômago e antes que ele se desfizesse, ele acrescentou: "e eu respondi: "sou negro sim, com muito orgulho!". Eu, coruja assumida que sou, não consegui segurar o choro. Ser negro nunca foi problema pra ele. Ao contrário de mim, que me descobri negra, só quando entrei na universidade. A luta contra o racismo é diária e às vezes dá um cansaço... Principalmente quando ouvimos que não somos negros, que nossa pele é clara, blá, blá, blá... É preciso muita conversa para construirmos juntos os argumentos que precisam ser repetidos, diariamente. Ontem, foi mais um dia de conversas difíceis. Eu, no computador, terminando a leitura de um texto; ele, lavando a louça do jantar. Ouvi sua voz atrás de mim, daquele jeito sério, quando ele vai falar coisa, depois que refletiu bastante: "mãe, tem alguma coisa muito errada com um país onde as mães negras só respiram aliviada depois que seus filhos chegam em casa". Ele disse isso, porque até aqui, em Baldim, um cidade com cerca de 7 mil habitantes, contanto os distritos, a cada vez que ele sai para dar um rolé de skate. eu tenho medo dele levar um enquadro da polícia. E ele continuou: "tem alguma coisa muito errada com um país que coloca uma modelo branca para ser assaltada por um moleque negro, numa abertura de olimpíada. Tem alguma coisa muito errada com um país, onde um pacote de pipoca é confundido com uma arma e a polícia mata um menino na porta de casa." Eu engoli em seco, aquele bolo no estômago se formou e continuo com ele até agora. E ele vai brigar comigo porque, mais uma vez eu publicizei sua "vida pessoal". Mas, penso que é necessário refletirmos sobre isso. Precisamos fortalecer a autoestima de nossas crianças negras e construirmos juntos com elas argumentos para combatermos o racismo nosso de cada dia.

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