segunda-feira, 8 de agosto de 2016

A casa

O som das patas do Scooby na porta me despertou do sonho. É um sonho recorrente: não tenho casa e alguém me acolhe. Há anos sonho isso. Na última semana sonhei umas três vezes. Esta noite, era uma casa grande, dois pavimentos, espaçosa. Uma sala comprida, conjugada com uma cozinha, dessas em estilo americano. Uma escada levava a um segundo andar. O quarto onde eu estava tinha duas camas de solteiro e um armário que achei ser muito parecido com o que o menino sonha para guardar seus tremzinhos. Tudo estava muito arrumado. Era uma casa sem marcas. Mais parecia um cenário e não um lugar habitado por gente que deixa suas marcas por onde passa: paredes com marcas de mãozinha de criança, sofá rasgado, louça lascada, madeira da janela gasta pelo sol e pela chuva.
Lembrei de um post que vi, há alguns anos, no blog do Alexandre Vidal Porto. Alexandre, além de escritor é diplomata e vive pelo mundo à fora. Neste post ele arrumava as malas para mais uma mudança. Se não me falha a memória ele estava indo morar no Japão. E ele citava um trecho de um livro da Adriana Lisboa. Fui atrás da Adriana e achei o blog dela, onde ela também falava sobre estar sempre mudando. Em um dos posts ela citava Vilém Flusser, filósofo judeu, nascido em Praga, que morou também no Brasil, na Itália, na França. Diz ele:
“Estrangeiro (e estranho) é quem afirma seu próprio ser no mundo que o cerca. Assim, dá sentido ao mundo, e de certa maneira o domina. Mas o domina tragicamente: não se integra. O cedro é estrangeiro no meu parque. Eu sou estrangeiro na França. O homem é estrangeiro no mundo.”
Foi com a Adriana Lisboa que aprendi que as malas precisam estar sempre leves.
Daí, lembrei de um poema da Lya Luft:
"Uma casa deve ter varandas para sonhar, cantos para chorar,
quartos para os segredos e a ambivalência."
Lembrei, também, da poeta Sophia de Mello Breyner. Quando ela mudou-se da cidade do Porto para Lisboa, já cansada de procurar um lugar para morar, ouviu da mãe que uma casa tem que ser boa por dentro e não por fora. Ela respondeu que não, que ela precisava de janela, pois uma casa precisa ter vista. A vista dela dava para o Rio Tejo.
É a vista que nos mantém conectados com o mundo. Quando eu morei em Florianópolis e os aviões passavam a caminho do aeroporto, baixinhos, já bem próximos dos nossos telhados no Campeche, além do medo que eu sentia deles caírem em cima da nossa casa, eles me lembravam, diariamente, do muito que ainda tinha pra conhecer.
Adélia também fala de casas, existentes não em bairros ou em ruas que se conhecem, mas num modo tristonhos de certos entardeceres. Casas infensas à demolição. Talvez por isso meu sonho recorrente.
Ontem, no apagar das luzes para dormir, depois de caçar muito pokemon, o menino pegou um livro pra ler. Mal começou a ler e veio me mostrar a epígrafe do capítulo, que, segundo ele, era a minha cara:
"Para mim, em minha pobreza, minha biblioteca bastava-me como ducado." William Shakespeare, em A Tempestade.
Aproveitei e falei pra ele de José Luis Borges, que dizia imaginar o paraíso como uma espécie de biblioteca.
Lembrei também de um dia, no comboio, em Lisboa, quando ele dividiu comigo os fones de ouvido para que eu escutasse um trecho de uma música do Rappa, que, segundo ele, também, era a minha cara:
"Te mostro um trecho, uma passagem de um livro antigo
Pra te provar e mostrar que a vida é linda
Dura, sofrida, carente em qualquer continente
Mas boa de se viver em qualquer lugar.
Sigamos, então, lembrando da minha amiga, Silvana Rodrigues, que me ensinou que quando falamos da nossa pobreza, na verdade, é da nossa riqueza que estamos falando. O que acumulamos nos últimos anos não se carrega em malas, por isso as nossas estão cada vez mais leves.
Lembro, também, do Criolo dizendo, que só há pouco tempo, conseguiu um cantinho pra morar e coloco a sua música para ouvir:
"Eu não tenho casa
Eu moro em casa de mãe
Casa de mãe é bom
Mas é casa de mãe
(...)
Um dia vou ter minha casa
E vai ser a coisa mais linda
Com gravuras de Oxossi, Ogum e Mãe Menininha.

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