Eu não nasci negra. Me tornei negra. Foi lá pelos 26 anos, quando
entrei na universidade. É, entrei tardiamente... Lembro de quando a
ficha caiu. Foi na disciplina "antropologia do negro brasileiro" no
curso de Ciências Sociais. Lembro também das inúmeras discussões que
provoquei em casa, quando levantava a questão racial. Somos 10 irmãos e
acredito que só 5, depois de sofrerem muitas, mas muitas situações de
racismo, se reconhecem como negros. Ano passado descobri que a minha
tataravó recebeu um pedaço de terra quando foi alforriada. Como gostaria
de saber mais sobre meus antepassados: como chegaram aqui, no interior
das gerais, de onde vieram, de qual país. Mas, nós negros não tivemos
esse direito. Nossas histórias foram invisibilizadas, os documentos da
escravidão foram queimados. Muito provavelmente, meu sobrenome Soares,
vem do senhor de escravos, proprietário da minha tataravó. Na semana que
passou, dois sobrinhos meus viveram situações de racismo. Um, de apenas
10 anos, está se descobrindo negro, sentindo na pele, da forma mais
dolorosa possível, o que é ser negro. O outro, de 28 anos, já percebeu
há algum tempo. Fiquei muito emocionada, porque este sobrinho de 28 anos
é muito calado. O máximo que conversávamos era quando ele me pedia a
bênção. "Bênção, tia!", e me estendia a mão. É assim todas as vezes que
nos encontramos. Assim foi criado. Eu, agnóstica, meio constrangida,
seguro firme em sua mão, firmo meu pensamento e desejo do meu mais
profundo ser que os deuses e deusas ou a força que existir no Universo o
proteja e com uma certa dificuldade, respondo: deus te abençoe. Já
trocamos alguma informação sobre rap, e só! No domingo, penso que pela
primeira vez, tivemos uma conversa longa. Conversamos sobre racismo. Ele
compartilhou uma situação que viveu, falou da raiva e da impotência que
sentiu e de como, na maioria das vezes, não sabe como agir. Eu disse a
ele que precisamos nos fortalecer e construir argumentos para a nossa
luta diária. Fiquei pensando nos meus vários sobrinhxs que já se
perceberam como "não-brancos", mas que ainda não se enxergam como negros
e como vai ser dolorosa essa constatação. Na madrugada de domingo mais
cinco jovens negros foram assassinados pela polícia. Não vi comoção na
minha TL. Percebo que muitxs amigxs que tenho por aqui e que curtem
minhas postagens, não se manifestam quando elas são relacionadas à
questão racial e ao racismo. Muitos amigxs progressistas, de esquerda,
sensíveis à causa das mulheres, da comunidade lgbt, aos direitos
humanos, à questão ambiental, mas que não se manifestam quando o assunto
é racismo. Como eu gostaria de ver essxs amigxs engajados nessa luta,
de mãos dadas com a gente, engrossando e fortalecendo o front. Eu
entendo que é difícil perceber quando não se vive na pele. Mas é
estranho, parece que até a palavra as pessoas têm medo de falar, é
sempre preconceito, discriminação e nunca racismo. Eu não consigo parar
de pensar nos meninos mortos pela polícia. Tenho filho negro e essa
angústia dele ser um "potencial suspeito" porque é negro, porque usa o
cabelo black power, me acompanha diariamente. Todos os dias converso com
ele sobre as abordagens policiais que virão, mais cedo ou mais tarde.
Penso que o problema mais urgente no país é o racismo e enquanto não o
enfrentarmos, continuaremos assistindo ao extermínio da juventude negra.
Cerca de 82 jovens são assassinados todos os dias no Brasil. 77% deles
são negros. Mata-se mais aqui, do que nas zonas de guerra. Mas essas
mortes não comovem. Como disse o Emicida, não vi ninguém trocar a foto
de perfil, nem nenhuma hastag #somostodos...A carne mais barata do mercado, ainda é a carne negra.
Roberto de Souza Penha: 16 anos;
Carlos Eduardo da Silva de Souza: 16 anos;
Cleiton Correa de Souza; 18 anos;
Wilton Esteves Domingos Junior: 20 anos
Wesley Castro Rodrigues, 25 anos. Estes são cinco dos cerca de 80
jovens que foram assassinados no domingo. Eles têm nome, família, tinham
sonhos, desejos e tiveram suas vidas interrompidas por este Estado
racista e assassino.
Bom dia pra você, se você conseguir. Eu sigo
aqui, com um bolo no estômago, pensando nas mães e pais que enterraram
os seus filhos ontem.
Baldim, 01 de dezembro de 2015
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