sábado, 13 de agosto de 2016

A carne mais barata do mercado

Eu não nasci negra. Me tornei negra. Foi lá pelos 26 anos, quando entrei na universidade. É, entrei tardiamente... Lembro de quando a ficha caiu. Foi na disciplina "antropologia do negro brasileiro" no curso de Ciências Sociais. Lembro também das inúmeras discussões que provoquei em casa, quando levantava a questão racial. Somos 10 irmãos e acredito que só 5, depois de sofrerem muitas, mas muitas situações de racismo, se reconhecem como negros. Ano passado descobri que a minha tataravó recebeu um pedaço de terra quando foi alforriada. Como gostaria de saber mais sobre meus antepassados: como chegaram aqui, no interior das gerais, de onde vieram, de qual país. Mas, nós negros não tivemos esse direito. Nossas histórias foram invisibilizadas, os documentos da escravidão foram queimados. Muito provavelmente, meu sobrenome Soares, vem do senhor de escravos, proprietário da minha tataravó. Na semana que passou, dois sobrinhos meus viveram situações de racismo. Um, de apenas 10 anos, está se descobrindo negro, sentindo na pele, da forma mais dolorosa possível, o que é ser negro. O outro, de 28 anos, já percebeu há algum tempo. Fiquei muito emocionada, porque este sobrinho de 28 anos é muito calado. O máximo que conversávamos era quando ele me pedia a bênção. "Bênção, tia!", e me estendia a mão. É assim todas as vezes que nos encontramos. Assim foi criado. Eu, agnóstica, meio constrangida, seguro firme em sua mão, firmo meu pensamento e desejo do meu mais profundo ser que os deuses e deusas ou a força que existir no Universo o proteja e com uma certa dificuldade, respondo: deus te abençoe. Já trocamos alguma informação sobre rap, e só! No domingo, penso que pela primeira vez, tivemos uma conversa longa. Conversamos sobre racismo. Ele compartilhou uma situação que viveu, falou da raiva e da impotência que sentiu e de como, na maioria das vezes, não sabe como agir. Eu disse a ele que precisamos nos fortalecer e construir argumentos para a nossa luta diária. Fiquei pensando nos meus vários sobrinhxs que já se perceberam como "não-brancos", mas que ainda não se enxergam como negros e como vai ser dolorosa essa constatação. Na madrugada de domingo mais cinco jovens negros foram assassinados pela polícia. Não vi comoção na minha TL. Percebo que muitxs amigxs que tenho por aqui e que curtem minhas postagens, não se manifestam quando elas são relacionadas à questão racial e ao racismo. Muitos amigxs progressistas, de esquerda, sensíveis à causa das mulheres, da comunidade lgbt, aos direitos humanos, à questão ambiental, mas que não se manifestam quando o assunto é racismo. Como eu gostaria de ver essxs amigxs engajados nessa luta, de mãos dadas com a gente, engrossando e fortalecendo o front. Eu entendo que é difícil perceber quando não se vive na pele. Mas é estranho, parece que até a palavra as pessoas têm medo de falar, é sempre preconceito, discriminação e nunca racismo. Eu não consigo parar de pensar nos meninos mortos pela polícia. Tenho filho negro e essa angústia dele ser um "potencial suspeito" porque é negro, porque usa o cabelo black power, me acompanha diariamente. Todos os dias converso com ele sobre as abordagens policiais que virão, mais cedo ou mais tarde. Penso que o problema mais urgente no país é o racismo e enquanto não o enfrentarmos, continuaremos assistindo ao extermínio da juventude negra. Cerca de 82 jovens são assassinados todos os dias no Brasil. 77% deles são negros. Mata-se mais aqui, do que nas zonas de guerra. Mas essas mortes não comovem. Como disse o Emicida, não vi ninguém trocar a foto de perfil, nem nenhuma hastag ‪#‎somostodos‬...A carne mais barata do mercado, ainda é a carne negra.
Roberto de Souza Penha: 16 anos;
Carlos Eduardo da Silva de Souza: 16 anos;
Cleiton Correa de Souza; 18 anos;
Wilton Esteves Domingos Junior: 20 anos
Wesley Castro Rodrigues, 25 anos. Estes são cinco dos cerca de 80 jovens que foram assassinados no domingo. Eles têm nome, família, tinham sonhos, desejos e tiveram suas vidas interrompidas por este Estado racista e assassino.
Bom dia pra você, se você conseguir. Eu sigo aqui, com um bolo no estômago, pensando nas mães e pais que enterraram os seus filhos ontem.

Baldim, 01 de dezembro de 2015

Nenhum comentário:

Postar um comentário