segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Da palavra que instaura

Adélia Prado tem um conto que eu adoro: "Sem enfeite nenhum". Fala de uma mãe com pouquíssima escolaridade que achava estudo a coisa mais fina do mundo. Tão minha mãe... No conto a mãe ficava emocionada em volta dos filhos estudando e dava recomendações: "você põe muita força no lápis", "se eu tivesse tempo, ninguém na escola me passava", "falar você em vez de cê, é tão mais bonito"... E num dia qualquer, a mãe, num esforço enorme, falou de uma vez, vencendo a vergonha: "me dá seu lápis de cor." E foi desenhando e colorindo uma rosa geométrica, falando cortado, nervosa e emocionada por vencer a timidez e assumir o desejo. Era tanta satisfação no trato com o lápis que a narradora chega a ficar aflita. Minha mãe não foi alfabetizada. Só duas vezes a vi manejando caneta. A primeira para votar no filho, candidato à vereador; a segunda para votar no Lula, candidato à presidente. Eu cheguei a ler o método Paulo Freire para ensiná-la, mas ela não teve paciência. Tinha muita vergonha por não saber ler. Eu gostava de ler para ela. Li trechos de "Só as mães são felizes" da Luicinha Araújo, mãe do Cazuza e choramos juntas. Lembro de um dia, na varanda quando li "Poema esquisito" da Adélia e ela chorou. Mamãe não conheceu o pai, teve uma história difícil com a mãe e quando eu li os versos finais: Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros,
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia."
Ela não aguentou e caiu no choro. Acho que ela nunca ouviu um "ôôôôi fia", pois se casou ainda adolescente, aos 16 anos. Nem teve tempo de ser filha, virou logo esposa e mãe. Durante muito tempo, mamãe tinha receio do que líamos. Até que um dia, não sei se eu ou minha irmã, lemos um trecho do "Cartas da Prisão", do Frei Betto pra ele, que respirou aliviada: "Ah, é isso que você ficam lendo?" Dia desses, quando cheguei de BH, o menino tinha revirado minha caixeta de livros. "Mãe, tô lendo 3 livros ao mesmo tempo." Um era "Quarto de despejo" para a aula de literatura; outro, que não lembro o nome, era para uma peça de teatro que vão fazer na escola; e o terceiro, que ele já havia lido alguns contos era, segundo ele, de uma tal de "Margaret Atwood", que pegou na minha caixa. Quase tive um treco. É que ele descobriu o poder da palavra. Isso veio com as letras dos raps que anda ouvindo. Ontem, enquanto ele finalizava um poema que estava escrevendo, cobriu a cabeça com o capuz do casaco, segundo ele, "para as ideias não escaparem", e antes de se trancar no quarto, disse: "mãe, vou imergir num processo criativo", e fechou a porta. Só saiu de lá para me mostrar o poema pronto. Na hora de dormir, quando fui ao quarto dar boa noite, ele lia Carolina Maria De Jesus e no criado ao lado, dois livros que pegou na estante. Um era sobre Che Guevara e o outro, o romance da portuguesa Alexandra Lucas Coelho, "A noite roda". Eu me espantei, porque até outro dia, o celular não deixava ele fazer mais nada. "Que isso menino? Não estou te entendendo, resolveu ler agora?" "É que descobri que as ideias fluem melhor quando a gente lê." Paulo Freire diz que o analfabetismo é a pior exclusão. Alfabetizar, é segundo ele, conceder ao outro o direito à palavra. Para Freire, os oprimidos precisam tomar de volta a palavra que os opressores insistem em negar-lhes. Fico pensando como teria sido a vida de mamãe se ela tivesse sido alfabetizada. Ela, uma das mulheres mais inteligentes que já conheci. E fico numa alegria danada vendo o menino descobrindo o prazer do conhecimento, se encantando pela poder da palavra. Essa palavra que instaura, que suscita afetos. E sou obrigada a discordar de Adélia. O estudo é tão lindo quanto o sentimento. Bom dia!

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