terça-feira, 3 de março de 2015

A última manga

Eram dias felizes. A casinha era simples, mas tinha um quintal enorme onde o milharal fornecia as bonecas das meninas: loira, ruiva, morena, podiam escolher à vontade. Estas bonecas eram boas de brincar porque nem precisavam de roupas. A palha abraçava a espiga como se fosse um cueiro bem apertado.

Depois da separação, os sábados eram reservados para a visita ao pai. Na sexta feira, ele retornava da Ceasa e sempre dava algum dinheirinho às filhas. Dinheiro, que repassado à mãe, era usado para comprar comida.

Naquele final de ano a casa estava cheia. Os irmãos mais velhos, que já moravam na capital, vieram com amigos. As irmãs trouxeram os namorados, gente bonita, interessante, da cidade grande. Deste dia, a menina tem lembrança da manga, a última no pé, amarelinha, lá em cima, na gretinha entre o último galho e o céu. Decidida, ela resolveu se arriscar. Subiu! Do chão ela avistava o fruto, mas quando estava lá em cima, ele desaparecia entre as folhas. Ficou neste sobe e desce durante um tempão, até que do alto da mangueira ouviu a voz do pai. O que ele fazia ali? Ouviu gritos e som de vidro se quebrando. Desceu da árvore assustada. Foram apenas alguns minutos, mas pareceu uma eternidade. O coração bateu fora do compasso ao ver quebrada, a mesa de madeira, onde, junto com os irmãos, sentavam fingindo que estavam jantando fora. O reflexo deles na cristaleira, agora também quebrada, eram os outros frequentadores do restaurante imaginário, A sopa de macarrão com batata, comprada com os trocados recebidos aos sábados, do pai, era o banquete mais delicioso do mundo. A mãe fazia com capricho e coloria com corante de urucum, que ela mesmo socava, com fubá, no pilão.

Ao ver os poucos móveis quebrados, lembrou da mãe. O desespero tomou conta dela quando não a viu. A vizinha, com uma das mãos, segurou seu braço com firmeza, com a outra, segurava a irmã. Ela engoliu o choro e fingindo calma, procurou falar pausadamente:
- Pode me soltar, eu não vou atrás dela, não!

Foi tão convincente que sentiu a mão afrouxando sobre o seu punho. Desvencilhou-se devagarinho e desatou a correr no único caminho que imaginou que a mãe poderia ter seguido. Correu como nunca imaginou ser capaz e gritava com toda a força de seus pulmões:
- Mãe! Mãe! Ô, mãe! Me espera!

Avistou a mãe na subida do morro, já sem fôlego. Ao ouvir a voz da filha, a mãe se apoiou no barranco poeirento e a esperou. Abraçadas ficaram as duas ali, esperando a respiração voltar pro ritmo. Uma vizinha chegou, pegou mãe e filha pelo braço e levou até a sua casa, um casebrezinho na beira da estrada, onde tirou água do pote numa caneca verde esmaltada, acrescentou açúcar e deu às duas para se acalmarem. Solidária, ela conhecia bem o desespero que via ali, nos olhos de mãe e filha.

Quando as coisas se acalmaram voltaram para casa. Era preciso catar os cacos e arrumar tudo. A menina foi brincar no quintal e viu a manga, a última, no chão do galinheiro com marcas de bico. Justo a última manga, pensou... Só se conformou quando ouviu a mãe comentar que ao ver a filha correndo atrás dela teve a certeza de quanto era amada. A menina sorriu. Ouvir isto era mais saboroso do que degustar todas as "últimas" mangas do mundo...

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