quinta-feira, 5 de março de 2015

Playlist

O alarme do celular 'nokia 110' toca. São 5 horas da manhã. Uma vontade de ficar na cama, mas a "vozinha", já conhecida, diz: "levanta, menina! Seu dia rende muito mais quando você caminha antes do menino ir pra escola".  Levanto."Preciso lavar esses tênis", digo pra mim mesma. Caminhar no campo, tão cedo, com a grama ainda molhada de orvalho, deixa o calçado imundo.

Já estou pronta quando ouço o som de pata na porta da sala. "Hahaha, hoje acordei primeiro que você, Scooby".

Ainda está escuro quando saímos pra caminhar. Sinto um pouco de medo, mas já, já, o  dia estará claro. Cansada de ouvir em meu celular velho a chiadeira das péssimas rádios e dos péssimos noticiários a esta hora da manhã, resolvi pegar o celular do menino.

Com o dedo indicador procuro pelo ícone "music player", como ele me ensinou. Vejo sua playlist: AC/DC,  Avenged Sevenfold, Black Sabbath, Bob Dylan, Bob Marley, Cartola, Charlie Brown Jr,  CPM 22, Criolo, David Guetta, Iron Maiden, Judas Priest, Led Zeppelin, Metallica, Migos, Motorhead, Nickelback, Nirvana, Ozzy Osbourne, Paramore,  Racionais MC's, Rae Sremmurd, The Rolling Stones, Sabotage, Sepultura, Tenacious D, U2, White Stripes, Wiz Khalifa.

Escolho Criolo, Convoque seu Buda. Ouço uma, duas, três vezes. "Pô, o menino só baixou esta? Não foi o cd todo não? Sacanagem", reclamo. Com o dedo indicador seleciono Racionais MC's, "Nego Drama".  Me acho tão boba ao sentir as lágrimas descendo. Não é TPM, nem nada. Por que estou assim, chorando ao ouvir Racionais? Lembro do menino aos 7 anos, chegando em casa, cantando a música. Lembro de um dia, nós dois assistindo na TV uma polêmica envolvendo o jogador Adriano e ele, pequenininho ainda, cantando após a reportagem: "o dinheiro tira o homem da miséria, mas não pode arrancar de dentro dele a favela"... Lembro também, do aluno do primeiro período, do curso de direito, há mais de 10 anos dizendo: "professora, você precisa escutar Racionais, as suas aulas de sociologia e as músicas deles falam das mesmas coisas"... Aí que o choro vem  mesmo..."Negro drama, eu sei quem trama e quem tá comigo, o drama que eu carrego, pra não ser mais um preto fudido". Já ouviu o menino cantar tantas vezes. Sempre a mesma ênfase no final da frase: "pra não ser mais um preto fudido"!

Deslizo o dedo indicador pela tela, Pressiono no ícone Bob Marley. Lembro do menino me zoando porque  nunca uso o polegar no touch screen. "Mãe, você tocando esta tela parece o ET tocando o dedo do Elliot".  Odeia touch screen, parece que tenho problema de coordenação motora, fico me sentido uma velha do século passado. Bob Marley canta "One Love", "Il meglio" e "Bad Boys". Lembra do menino, ainda bebê, balbuciando "nan", nan"  e fazendo o sinal de não com o dedinho, indicando que não era aquela música. Só pousava a cabecinha no meu ombro  e relaxava para dormir, quando ouvia os primeiros acordes do violão de Gil,  em "three little birds" (don't worry), do cd "Kaia N' Gan Daya". Antes de terminar a música, ele já estava dormindo. Até hoje, só dorme ouvindo música.

O próximo ícone a ser  pressionado é "Cartola", "Preciso me encontrar". Lembro da noite anterior, quando depois de ouvir a música pela primeira vez, o menino correu para baixá-la no tablet. "Mãe, que coisa mais linda que é isso? Não dá vontade de parar de ouvir." Nesta hora meu coração amolece e  penso que afinal, alguma coisa eu acertei na criação desse menino.

Me sentindo o próprio ET,  agora pressiono Charlie Brown Jr e Sabotagem, em "cantando pro santo". "Ah, eu acho que o jovem de hoje em dia deve ler e se informar, ver bem as coisas como são, poder contestar as coisas de forma clara, não só rimas em vão", canta Chorão... "Onilê, ô pai Ogum, ai, ei, eô, mamãe Oxum, filho de Zambi, cansado de ver sangue aqui na sul", completa Sabota.

Em seguida ouço Led Zeppelim e lembro do menino na guitarra, tentando aprender os acordes de "Stairway to heaven".  Lembra dele ainda na minha barriga e o pai perguntando: "será que este menino vai gostar de música legal"?

Depois ouço U2, "Sunday bloody sunday" e lembra do dia que apresentei a banda ao menino e expliquei o que foi aquele "sangrento domingo".  Lembro também, dos tempos do Colégio Municipal, do jornalzinho que minha turma fazia nas aulas de português e da amiga Lais, apaixonada pelo Bono. Esqueço o ritmo da caminhada e começo a dançar. Scooby entra na dança e começa a pular. Minha camiseta fica toda marcada de patas.

São 6 horas e 27 minutos. Uma hora de caminhada e nem vi o tempo passar. Preciso me apressar para tirar o menino da cama, senão ele perde a hora da escola. Chegando no portão o alarme do celular começa a tocar "Preciso me encontrar". O danadinho mudou a música do despertador. Corro e coloco o telefone ao lado do travesseiro dele. Ele merece acordar ouvindo Cartola.






Nenhum comentário:

Postar um comentário